A razão principal que explica a disseminação de esquemas contratuais prende-se com o elevado défice de execução dos comandos legais nesta matéria, em particular dos que impõem limites máximos de emissões poluentes. Como explica Jacqueline Morand-Deviller: “o acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos sancionatórios; a participação dos suspeitos faz deles cúmplices, o que parece ser mais eficaz do que a repressão”. A AP vê-se na obrigação de recorrer a este meio alternativo, reconhecendo a dificuldade de fazer cumprir coactivamente os imperativos legais, então abdica temporariamente dos mesmos, procedendo à concertação com os agentes poluidores, na esperança de obter posteriormente alguma execução das normas pelos mesmos.
Foram os arts. 35º/2 e 3 LBA (em 1987) que “inspiraram” a criação deste tipo de contratos, hoje previstos no DL 236/98, que estabelece Normas de Qualidade da Água.
A criação destes contratos traduz-se no poder que tem a AP, ao abrigo da sua autonomia pública contratual, de celebrar com um privado um contrato que derroga as normas sobre valores-limite de emissões poluentes para o meio hídrico.
Estes contratos são celebrados entre as associações representativas do sector empresarial ao qual as normas de descarga se aplicam e o Ministro do Ambiente e o ministro responsável pelo sector de actividade económica. Também devem poder celebrar estes contratos a Direcção-regional do Ambiente e a Direcção-geral do Ambiente, já que uma é competente em matéria de descargas poluentes e à outra cabe a aprovação do plano e calendário contratuais, respectivamente. As normas de descarga sectoriais redefinidas em razão do contrato celebrado são fixadas por portaria conjunta do Ministro do Ambiente e do Ministro responsável pelo sector de actividade económica a que pertence a associação outorgante. Posteriormente à celebração dos contratos, podem a eles aderir (tal como nas convenções colectivas laborais) quaisquer empresas de um determinado sector da actividade económica.
Os contratos de adaptação são os previstos no art. 78º do referido diploma e o seu sentido é o de degradar o índice de protecção aplicável, no intuito de aliviar as empresas do cumprimento de standards cuja implementação técnica importa custos elevados. O contrato de adaptação surge aqui em concretização e um imperativo de proporcionalidade, visando evitar males maiores sem com isso comprometer o objectivo da lei.
Já, pelo contrário, o contrato de promoção ambiental, previsto no art. 68º, vincula as empresas aderentes a normas mais exigentes do que as aplicáveis ao sector de actividade em causa, acordando num plano de melhoramento da sua capacidade ambiental, sem que tal lhes seja exigido por lei. Quais as vantagens que decorrem deste tipo de contratos para as empresas? O preceito não o refere. Mas elas são possíveis de configurar: maior selectividade da procura por razões ambientais, sobretudo de intermediários estrangeiros; e os auxílios de Estado, que fazem depender a atribuição do auxílio subvencional ou a prioridade nas candidaturas de empresas do cumprimento das suas obrigações ambientais e dos investimentos que façam na melhoria dos seus desempenhos.
O maior problema destes contratos prende-se com a sua eficácia externa: eles induzem a modificação de normas legais. Eles alteram o parâmetro de protecção fixado na norma, por instrumento contratual, e tal modificação ou alteração é extensível mesmo a empresas não outorgantes, que sejam concorrentes naquele sector económico. O problema que se discute é o de esta realidade ser atentatória da proibição de “deslegalização” constante do art. 112º/6 CRP. É a própria CRP que proíbe a derrogação de actos normativos. Será que estamos perante normas inconstitucionais?
Analisemos a evolução legislativa nesta matéria, de modo a tirarmos a final as devidas conclusões:
» Os arts. 35º/2 e 3 da LBA
O art. 35º/2 refere-se a contratos-programa para redução da carga poluente. Será que este preceito tem um potencial habilitante a para a celebração de contratos cujo objecto se dirija à derrogação temporária ou à suspensão de normas ambientais de polícia, de forma a atribuir às empresas poluentes um prazo de adaptação aos normativos vigentes? Se considerarmos que sim, fica atenuada a discussão sobre a sua compatibilidade com o Princípio da Legalidade.
O potencial habilitante do preceito tem sido defendido a propósito da sua inserção sistemática: a norma surge integrada no capítulo designado “Licenciamento e situações de emergência”. Castro Rangel defendeu que, dado o contexto sistemático em que aparece a factispécie do contrato-programa pode depreender-se que a AP, através da sua celebração, fica autorizada a tolerar, durante certo período de tempo, a emissão de cargas poluentes. Assim, estes contratos surgem como sucedâneo da possibilidade de suspensão ou redução das actividades poluentes, como alternativa destinada a obviar as externalidades que o exercício rígido de poderes de polícia poderia originar. Tem em vista a ordem pública ecológica e a conseguir a prazo a redução da poluição.
Por seu turno, Mark Kirkby não concordo com o exposto. Segundo diz, a norma pode estar a reportar-se a uma outra realidade, mais habitual no âmbito da Administração concertada: aqueles contratos-programa através dos quais a AP, em troca de uma componente subvencional, procura incitar os particulares a desenvolverem actividades de interesse público ou a orientarem a sua actividade privada para objectivos de interesse público. Casos em que a AP obtém em troca de contrapartidas o compromisso de as empresas reduzam gradualmente a carga poluente. Aliás, a inserção sistemática revela-se inadequada (“situações de emergência”), visto que estes contratos são de execução prolongada no tempo. E o art. 35º/2 nem contém uma tipificação mínima do conteúdo e efeitos dos contratos-programa que permita sustentar que dele se retira uma habilitação no sentido apontado, não reúne os requisitos mínimos exigíveis pelo princípio da Legalidade.
Se se defender que o art. 35º/2 é uma norma habilitante deste tipo de contratos, ter-se-ia que concluir pela sua inconstitucionalidade, defende Mark Kirkby. Pois ela violaria o princípio da tipicidade das formas de lei (do congelamento do grau hierárquico dos actos normativos). Ao permitir que um acto que emana do poder administrativo derrogasse ou suspendesse actos legislativos, o art. 35º/3 violaria o disposto no art. 112º/6 CRP
Não obstante o exposto, é certo que foi o disposto no art. 35º/2 e 3 LBA que levou à construção de contratos deste escopo a nível do Direito do Ambiente.
» O DL 74/90, sobre a Qualidade da Água (entretanto revogado)
O objecto dos contratos celebrados ao abrigo deste diploma foi o de conceder às empresas poluidoras um prazo para se adaptarem à legislação ambiental vigente. As empresas aderentes ficavam “autorizadas”, por determinado período, a desenvolver níveis de poluição que ultrapassavam os limites estabelecidos nos dispositivos legais em vigor. Em contrapartida, as empresas aderentes obrigavam-se a dar cumprimento às prescrições estabelecidas e aos prazos indicados no plano de adaptação ambiental e a adaptarem os seus processos produtivos às normas ambientais até ao termo da vigência dos contratos.
Os contratos referidos são os contratos de adaptação ambiental, que neste diploma, vinham previstos no art. 40º/3: ele visava as empresas já instaladas à data da entrada em vigor do diploma. E seria da competência do Director-Geral do Ambiente fixar por despacho um prazo de adaptação às normas de descarga das águas residuais.
É certo que é prática recorrente que as disposições transitórias das leis façam depender o seu início de vigência de regulamentação complementar, de modo a conferir-lhes aplicabilidade. Mas Mark Kirkby explica porque considera que o art. 40º/3 era inconstitucional: a determinação do momento do início de vigência de uma lei faz ainda parte do conteúdo dessa lei, pelo que a previsão de que a sua entrada em vigor depende de acto de natureza infra-legal viola o disposto no 112º/6 CRP. Explicando melhor: as disposições transitórias podem fazer depender o início de vigência da lei de regulamentação complementar, quando a lei seja inexequível por si mesma, carencendo a posteriori de uma actividade concretizadora a nível administrativo. Pelo contrário, as disposições transitórias do DL 74/90 têm um efeito verdadeiramente constitutivo, pois a lei seria imediatamente exequível.
O que é certo, é que apesar de tudo isto, nunca foi suscitada a inconstitucionalidade do preceito e o mesmo sustentou a realização de inúmeros contratos ambientais. Mas a utilização do preceito foi além do que o mesmo previa: tais contratos foram celebrados com qualquer tipo de empresas, e não apenas com empresas já instaladas antes da entrada em vigor do DL; e visaram a adaptação de quaisquer normas ambientais e não apenas as constantes do diploma sobre a qualidade da água, como era suposto.
Fernanda Maçãs consegue encontrar um fundamento para estes contratos: que existia uma margem de discricionariedade da qual goza a AP para iniciar ou não procedimentos sancionatórios. Mark Kirkby refuta que não existe um princípio de oportunidade, o mecanismo de aplicação de sanções é um poder vinculado. Se o mesmo cedesse a juízos de oportunidade, estar-se-ia perante a violação do princípio de inalienabilidade e irrenunciabilidade dos poderes públicos.
Bem vistas as coisas, a celebração daqueles contratos foi realizada ao arrepio de qualquer base legal, constituindo tal uma violação de lei, tornando anuláveis todos os contratos que foram celebrados.
» DL 352/90, sobre a Qualidade do Ar
Este diploma contém um art. 17º, uma norma de direito transitório, que abre o caminho à via contratual, que apenas é aparentemente análoga ao art. 40º/3 do DL 74/90. Onde está a diferença? O DL 352/90 estabelece expressamente que as normas que estabelecem os valores-limite de emissões são normas de natureza regulamentar. E estabelecem os arts. 5º e 9º que esses valores-limite são fixados por portaria. O legislador aqui qualifica expressamente como de natureza infra-legal as matérias que vão ser objecto do contrato-programa. Portanto, neste caso, nenhum problema se coloca a propósito do princípio da tipicidade das formas de lei.
» DL 236/98, sobre a Qualidade da Água (que revogou o DL 74/90)
Este diploma foi o primeiro a prever expressamente a figura dos contratos de adaptação ambiental, no seu art. 78º, e dos contratos de promoção ambiental, no art. 68º, ambos já referidos logo no início desta exposição. No momento actual, esta é a única previsão normativa específica de contratos ambientais do tipo em apreço. Mas pecam pela sua falta de clareza e má técnica legislativa. Por exemplo, o art. 78º contém 11 números, onde o legislador pretendeu tratar todo o regime jurídico da nova figura contratual. Quais são os problemas escondidos por detrás deste novo regime? O art. 78º/1 refere-se a uma adaptação à legislação ambiental vigente, ou seja, quaisquer normas ambientais. À semelhança do que aconteceu nos anos 90, ao abrigo do DL 74/90, ao arrepio da lei. Mas, parece haver uma salvação para o disposto no preceito, se procedermos a uma interpretação cuidada a atenta. O mesmo nº1 do art. 78º contém a expressão: “…nomeadamente às disposições do capítulo V…”. Ou seja, isto deve querer significar que as normas relativamente às quais são permitidos estes contratos, para além das do capítulo V, serão as restantes normas do próprio diploma e não de outros.
Há ainda um outro problema, grave: na norma transitória consta que a legislação substantiva entra em vigor com este novo diploma, mas depois fala na fixação de um prazo e calendário de adaptação através de acto administrativo. Ou seja, a norma já é exequível por si mesma, não precisa de mais nada.
Afinal, o que concluir depois de tudo isto? Ainda podemos salvar a figura dos contratos de adaptação ambiental?
Vasco Pereira da Silva diz que é preciso compatibilizar os princípios da legalidade e tipicidade das formas de lei com a eficácia da realização da polícia ambiental, com a participação e colaboração dos particulares e a tutela da confiança dos mesmos. Não se deve afastar a celebração de contratos de adaptação ambiental, em razão de valores que eles próprios também prosseguem. O Autor admite a figura dos contratos de adaptação ambiental que se afastem de limites legais, a título excepcional, conquanto isso seja susceptível de encontrar base e fundamento na previsão legislativa. Mais adianta que, o 112º/6 CRP visa evitar “fugas à hierarquia dos actos normativos”. Então, se o contrato de adaptação ambiental não configurar uma “fraude à lei ou à CRP” e consistir apenas num mecanismo concertado e gradual de aplicação da lei, nos termos em que ela própria estabelece, não irá existir violação da disposição constitucional. Devem, contudo, ser observadas mais duas condições: a lei fixadora dos limites deve estabelecer um regime geral imediatamente aplicável e outro especial, dependente da celebração do contrato; e o regime especial deve estar limitado pelas regras de competência, fim e princípios fundamentais da actividade administrativa.
Por fim, também Mark Kirkby reconhece que o assumir de tarefas de polícia administrativa em novas áreas em que se entrecruzam novos interesses públicos fundamentais e novos direitos fundamentais da colectividade e do indivíduo levaram a transformações ao nível do grau de densidade preceptiva das normas de competência. A lei pode revelar uma incapacidade para antecipar as diferentes actuações da AP na prossecução do interesse público. Os imperativos de eficácia levam a uma margem de autonomia da AP face aos comandos legislativos na escolha dos melhores meios para alcançar a realização do interesse público. E o que seja o interesse público não se pode extrair unicamente da lei, ele resulta da ponderação das circunstâncias concretas e da sua contraposição aos interesses privados. A lei passou apenas a programar e orientar a conduta da AP e esta passou a ter mais auto-determinação e liberdade criativa no que toca à escolha dos instrumentos adequados à prossecução do interesse público. Reafirmando a citação inicial de Jacqueline Morand-Deviller, deve ser reconhecido ao particular o papel de colaborador da AP na prossecução do interesse público. O acordo dos particulares compensa o menor garantismo que a lei assegurava e o contrato apresenta-se como resposta à conciliação entre garantismo e eficiência da actividade administrativa.
Assim sendo, é visível que os imperativos de eficácia têm conduzido a uma diminuição da densidade normativa ou da carga hetero-determinadora do comando legal, que confere uma maior autonomia à AP e o interesse público a prosseguir tende a ser definido de forma mais genérica e programática, muitas vezes ficando-se o legislador pela mera enunciação de um conjunto de valores a salvaguardar.
Conforme diz Isabel Moreira: “O princípio da legalidade vai cedendo a favor de um princípio de eficácia”.
Importa, por fim, referir quais são os tipos de contratos ambientais que, na óptica de Mark Kirkby (e que recebem a concordância de Vasco Pereira da Silva), devem ser considerados admissíveis:
- contratos de promoção ambiental;
- contratos através dos quais os particulares se vinculam a um plano de adaptação a normas de natureza regulamentar;
- contratos de adaptação a normas legais que estabeleçam limites imperativos de poluição, cuja previsão comporte determinada margem de abertura e conceitos com elementos de discricionariedade, como é o caso, p.ex., de medidas acessórias de punição ou medidas de emergência relativamente a ilícitos ambientais. É o caso das medidas de redução ou suspensão de laboração temporária do art. 35º LBA;
- contratos substitutivos de actos administrativos praticados no exercício de poderes administrativos de polícia ambiental de tipo preventivo, de que são exemplo as licenças ambientais e industriais.
Ana Catarina Correia
Subturma 5
nº 17117
BIBLIOGRAFIA:
- Mark Kirkby, Contratos de Adaptação Ambiental, AAFDL, 2001.
- Vasco Pereira da Silva, Verde, Cor do Direito, Almedina, 2001.
- Carla Amado Gomes, Tratado de Direito Administrativo Especial.
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