Para além dos grandes acidentes ambientais da história, como são os casos mais conhecidos de … Seveso – Itália – 1976; Three Mile Island – Pensilvânia – Estados Unidos – 1979; Vila Socó – Cubatão – Brasil – 1984; Bhopal – Índia – 1984; Chernobyl – Rússia – 1986; Exxon Valdez – Alasca – 1989; Rio de Janeiro, Brasil – 2000; Espanha - Navio Prestige, das Bahamas – 2002; Golfo do México – 2010; Usina Nuclear Fukushima – 2011; Há um acidente/catástrofe, em Itália, muito pouco conhecido, pelo menos por uma geração mais recente. Ao tomar contacto através da visualização do Canal História suscitou-me elevado interesse, e aqui faço um enquadramento mais complexo sobre o que realmente aconteceu com a barragem de Vaiont, Itália, em 1963.
O rio Vaiont é um afluente do rio Piave, localizado no nordeste de Itália, que nasce nos Alpes Italianos e desagua no Mar Adriático, próximo da cidade de Veneza. O vale do Vaiont, situa-se próximo da fronteira com a Áustria e com a Eslovénia, a cerca de 100 km a norte de Veneza. Trata-se de um vale profundo e apertado, isto é, uma verdadeira garganta em que, consequentemente, as condições fisiográficas são muito propícias à construção de uma barragem. Devido a tais condições, na transição das décadas de 50 para a de 60 do século XX, foi aí efectivamente construída uma grande barragem destinada à produção de energia eléctrica, que ficou conhecida por barragem de Vaiont. As vertentes do vale têm, em geral, pendores muito elevados, chegando a ser quase verticais. Embora a ideia de construir uma barragem no vale do Vaiont fosse já antiga, tendo sido inicialmente proposta na segunda década do século XX, a solicitação oficial para concretização do projecto foi apresentada pela SADE (Società Adriatica di Elettricità) em 22 de Junho de 1940, em plena II Guerra Mundial. Fazia parte de um projecto mais vasto, que tinha como objectivo a implementação de uma cascata de barragens nesta parte da bacia do rio Piave. Efectivamente, o crescimento do consumo de electricidade impunha que se aumentasse significativamente a produção de energia eléctrica na região. Tal ficou bem expresso em declarações da SADE, nessa altura, quando afirmava que "... só no último ano o consumo de energia de Veneza e do porto industrial de Maghera ultrapassou o meio milhar de KWh, isto é, um terço de toda a energia produzida na região, verificando-se tendência para que, no futuro próximo, haja um crescimento rapidíssimo devido à demanda da indústria aqui instalada". Na década de 40 foram apresentados, pelas comunidades locais, vários protestos, de que são exemplo os de Longarone, preocupada com o desvio da corrente e eventual erosão de terrenos agrícolas, e o de Erto Casso, que lamentava a perda de terrenos férteis. O projecto foi completamente aprovado em 6 de Julho de 1957, embora, na prática, a SADE tenha iniciado os trabalhos de escavação, embora sem as necessárias autorizações em Setembro de 1956. Em Março de 1960, em plena fase de enchimento da Albufeira, e certamente devido a alteração dos níveis freáticos, ocorreu uma pequena movimentação de massa que passou quase desapercebida. Sem ter em consideração o pequeno movimento de massa que tinha ocorrido em Março na vertente esquerda da albufeira, em Maio é apresentada nova solicitação para elevar o plano de água. A 4 de Novembro de 1960 verificou-se nova cedência da vertente, desta vez com maior amplitude, nas imediações da localidade de Piano della Pozza. Ao penetrar na albufeira gerou uma onda "spash" com 2 metros de altura que, ao embater no paredão da barragem, atingiu os 10 metros. No entanto não provocou danos nem na barragem, nem na periferia da albufeira. Perante o perigo do reservatório poder ficar cortado em dois na sequência de uma cedência da vertente, o que criaria grandes dificuldades não só no que se refere à produção de electricidade, mas também caso de ocorressem cheias, decidiu-se construir uma galeria de derivação na margem direita do fundo do vale. Tal permitiria assegurar a ligação das partes extremas da albufeira viabilizando, assim, quer a continuação da produção de electricidade, quer a vazão das águas caso se verificassem afluências excepcionais e a drenagem superficial fosse dificultada. No início de Março a empresa solicitou o enchimento da albufeira, referindo-se, nessa solicitação, que "... no que se refere às movimentações na vertente do Monte Toc confirma-se, como é demonstrado pelo diagramas anexos, que o movimento apresenta tendência para parar. Consequentemente, a situação é tranquila; as movimentações são insignificantes ...". Porém, em Outubro de 1962, recomeçaram os movimentos na vertente, ainda que apresentassem velocidades muito inferiores às verificadas em Novembro de 1960. Entretanto, o Decreto Presidencial de 12 de Dezembro de 1962,estipula que a empresa estatal ENEL deveria controlar todas as actividades relacionadas com a energia eléctrica, da produção à venda. Em consequência desta decisão a SADE (Società Adriatica di Elettricità) foi, de certa forma, nacionalizada, sendo absorvida pela ENEL, a qual tomará conta da barragem de Vaiont apenas a 27 de Julho do ano seguinte. A 6 de Outubro a estrada periférica da albufeira está, nesta zona, quase intransitável. Um funcionário do organismo responsável pelas estradas, que nesse dia efectuou uma visita de trabalho a Pineda descreveu a situação nos seguintes termos: "... a estrada está cheia de fendas de tal modo que essas depressões comprometem a passagem. A via já não parece uma estrada mas sim um campo lavrado ...". No dia 7 são descobertas novas fissuras no lado esquerdo da vertente do Monte Toc, paralelas à margem da albufeira, as quais chegavam a ter um metro de largura e dez de comprimento. Perante tais sinais, decidiu-se a evacuação das casas localizadas na vertente do Monte Toc, à excepção das de Pineda, Prada e Liron. Pela hora de almoço do dia 8 de Outubro (véspera da grande movimentação de massa) abre-se nova fenda, desta vez nas instalações dos operários, com 5 metros de comprimento e 50cm de largura. A fenda alargou-se rapidamente e, passadas 3 horas tinha já quase meio metro. Outras notícias tendiam a confirmar que a situação era preocupante: árvores que se inclinavam progressivamente e acabavam por cair, fendas que se alargavam meio metro em apenas uma hora. Ás 22:39 do dia 9 de Novembro de 1963 verificou-se cedência muito rápida da vertente, e uma massa enorme de materiais incoerentes (solo, rególito, etc.), juntamente com as árvores da floresta, os campos agrícolas e as casas que aí existiam, desceu a encosta com velocidade elevada e penetrou subitamente na albufeira da barragem. O ruído foi ensurdecedor e a estação sísmica existente nas instalações da barragem registou, na altura, um abalo sísmico fortíssimo. A súbita penetração de tão grande massa no reservatório provocou a deslocação de mais de 50 milhões de m3 de água, o que gerou uma onda de grande altura (cerca de 250m) que, segundo o sentido da propagação, se pode considerar que actuou como 3 grandes ondas. Outra das ondas propagou-se para montante da albufeira, onde o vale do Vaiont é mais largo, o que provocou o abaixamento da altura da onda, o que evitou que Erto fosse atingida. Porém, mesmo assim, flagelou as aldeias de Frasegn, Le Spesse, Cristo, Pineda, Ceva, Prada, Marzana et San Martino, provovando 158 mortos. As localidades situadas nas margens do Piave, a altitudes mais baixas, a começar por Longarone, foram completamente devastadas. As linhas férreas da estação de Longarone foram arrancadas e dobradas várias vezes. Cerca de 80% das vítimas mortais (1450) causadas por este evento estavam em Longarone e nas comunidades vizinhas de Rivalta, Pirago, Faè e Villanova. Oficialmente, a tragédia saldou-se em 1917 mortos e um número quase insignificante de feridos. A tragédia de Vaiont foi causada, obviamente, pela grande movimentação de massa e pela onda que gerou na albufeira e que rapidamente se propagou para montante e, galgando a barragem, desceu o vale. Devido às margens escarpadas do Vaiont, os danos provocados neste vale foram relativamente limitados. Porém, quando a onda atingiu o vale do rio Piave, cujas margens são mais suaves e a ocupação humana aproveitou as zonas de acumulação, mais baixas e mais aplanadas, a destruição atingiu grande amplitude. Em algumas povoações praticamente nada ficou de pé. O número de mortes foi elevada. Se é importante conhecer em pormenor as causas imediatas da tragédia, é provavelmente mais relevante saber quais foram as causas mais remotas, ou seja, aquelas que verdadeiramente conduziram à catástrofe. Como acontece frequentemente, não é possível identificar uma causa única. Pelo contrário, identificam-se vários factores cuja convergência conduziu a este acontecimento catastrófico. Entre os factores aludidos inclui-se o estudo geológico prévio da zona montanhosa onde se viria a instalar a albufeira da barragem. Aparentemente este estudo foi bastante deficiente. O facto de, na fase de construção, se ter efectivamente encontrado muito mais material rochoso alterado do que o que se esperava parece confirmar tal facto. Aliás, um dos problemas que surgiu durante a construção foi a quantidade de betão que foi preciso utilizar, pois que foi preciso consolidar a camada de rocha alterada, e a fissuração existente obrigou a aplicar muito mais cimento do que o que inicialmente se previa. O Engenheiro edificador citou numa entrevista que “ a ceder, só a montanha nunca a barragem”. É, também, de considerar os interesses económicos em jogo. Tinha-se efectuado um grande investimento e era preciso rentabilizá-lo o mais depressa possível. O facto de ser ter construído a galeria de derivação na margem direita do fundo do reservatório constituiu um investimento suplementar, mas que demonstra que havia consciência da possibilidade de ocorrer uma grande movimentação de massa. O investimento suplementar aludido era a garantia da rentabilidade do investimento inicial. Todavia, havia que não alarmar a sociedade. Consequentemente, foram bastantes as mensagens de tranquilidade, de que a situação estava controlada, ao mesmo tempo que se seguia uma política de confidencialidade e de segredo, o que é relativamente comum no meio empresarial mas que, por vezes, como aconteceu neste caso, culmina em tragédia... Muitos foram os alertas dados por elementos da população e por profissionais que visitavam a região, designadamente de responsáveis pelas estradas. Todavia, no que se refere à segurança das populações, nada foi feito. Não se procedeu a evacuações da população. De forma resumida pode afirmar-se que a catástrofe foi induzida por três causas principais: a) conhecimento científico insuficiente, principalmente no que se refere à geologia; b) prevalência dos interesses económicos sobre a análise de vulnerabilidade e riscos; c) não obediência ao "Princípio da Precaução". Como é possível mesmo sabendo de todos os riscos ambientais que poderiam acontecer, ao longo dos anos manter tal situação? Mesmo sabendo que provavelmente iria acontecer uma catástrofe, ninguém ter coragem para parar com tal “estupidez”. Através de relatos de pessoas que na época tinham conhecimento para além da população comum, referem que, a paragem de tal obra teria elevados custos económicos e políticos, “ muitas cabeças seriam cortadas” foi a expressão utilizada, e portanto a solução foi esconder e deixar andar pois a politica e a económica estavam muitos graus acima do ambiente e das pessoas. Esperemos que em Portugal não mais se sobreponha interesses políticos e económicos aos problemas ambientais. Um aparte, não que seja uma situação semelhante, mas em relação a linha ferroviária da linha do TUA, por razoes diferentes obviamente, aconteceu a mesma sobreposição do poder politico e económico ao direito do ambiente, e principalmente a um direito social neste caso especifico.
Para concluir, após a catástrofe apuraram-se responsabilidades e o caso foi julgado em tribunal. Três engenheiros (Alberico Biadene, director da companhia de construção hidráulica; Curzio Batini, funcionário público que testou a barragem; e Almo Violin, director do departamento de engenharia civil da barragem) foram condenado a 6 anos de prisão.
A barragem ainda existe, embora a quantidade de electricidade que produz seja bastante pequena. Bibliografia: Canal História; Dias, João - Elementos de Estudo; Bromhead, Eddie - The Vaiont Landslide in the Dolomites; Petley, David - The Vajont (Vaiont) Landslide ; Tridentino di Scienze Naturali, Vol. XVI - Fasc. I; David Cardoso – 17254 – sub turma 8
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