sexta-feira, 25 de março de 2011

O Silêncio dos Inocentes

"A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo que seus animais são tratados." (Mahatma Gandhi)

A realidade ambiental, tal como definida na Lei de Bases do Ambiente, inclui não só elementos como o ar, a luz, a àgua, etc, mas também a fauna na alínea f) do seu artigo 6º. Seguidamente o artigo 16º da referida lei consagra em que termos será essa fauna protegida, termos esses a serem desenvolvidos sobretudo em legislação especial.

Fauna é um termo definido no dicionário da língua portuguesa como o conjunto de espécies animais que caracterizam uma região ou época. Não querendo abrir este post com afirmações demasiado controversas (mas não resistindo a uma curta observação do género), parece-me que nesta definição, enquanto “animal que caracteriza uma região ou época” seria de incluir o próprio Homem. Porquê? (olhares de espanto!). Como todos sabem, o Homem é também um animal, mas desta feita diferente das outras espécies porque racional (por vezes!). Habitante do planeta terra, o Homem é todavia um locatário recente em relação a outros que já aqui residiam. De facto, a vida terá começado na Terra há cerca de 3.5 biliões de anos, sendo que o Homem (ou pelo aqueles espécimes que conseguiram afastar-se do parente Australopitecus) teve a sua chegada triunfal há cerca de 2.3 milhões de anos apenas. Isto significa que já a fauna proliferava abundantemente na Terra quando a espécie humana surgiu, pelo que em tese não deveríamos passar de meros sublocatários neste planeta. Partilhamos por isso todo o Ambiente que nos rodeia (e portanto as referidas àgua, ar, solos, subsolos, flora…) com outros vizinhos, que são animais de outras espécies. Contudo, nem sempre somos os vizinhos mais cívicos.

Por vezes, sem o mínimo sentido de respeito, colocamos em causa a própria liberdade e integridade física destes nossos vizinhos, retirando-os das suas habitações legitimamente ocupadas muito antes de nós (os seus habitats naturais) e fazendo deles objecto de comércio desenfreado. Ora, é aqui que entra o objecto deste post. É que entre a vizinhança humana, alguns moradores não aprovavam esta situação e reuniram-se para elaborar a CITES (Convention on International Trade in Endangered Species
of Wild Fauna and Flora). Embora a CITES tenha por objecto também a protecção da flora, neste post concentrar-me-ei essencialmente na fauna.

A CITES constitui assim uma fonte internacional de Direito do Ambiente, uma convenção assinada por 175 Estados (entre os quais Portugal, um vizinho cívico!) e em vigor desde 1975, que tem por objectivo não a completa erradicação do comércio de animais, mas o controlo regrado desse mesmo comércio, de forma a evitar a extinção de espécies ameaçadas.

Note-se que, sobretudo no plano internacional, o comércio de espécies ameaçadas é um negócio de milhões, pelo que a ausência da CITES poderia significar uma catástrofe a nível mundial em termos da sobrevivência dos nossos vizinhos mais ameaçados. A esse propósito recordem-se os casos dos elefantes, cujo comércio de marfim ainda leva à matança cruel de muitos espécimes ou dos tigres e de outros animais cujas peles são deveras cobiçadas. Note-se também que nem todas as espécies que constam dos anexos da CITES estão, de facto, ameaçadas de extinção mas a continuação do comércio desregrado das mesmas poderia encaminhá-las rapidamente para essa situação.

Parece-me que no âmago da CITES se encontra presente um princípio que é também comum ao nosso ordenamento ambiental: o desenvolvimento sustentável. É que, de facto, a CITES não visa, como já mencionado supra, o fim do comércio de espécies mas apenas um controlo do mesmo. Se de um lado da balança pesa o desenvolvimento sócio-económico que este negócio de milhões pode trazer aos seus intervenientes, já do outro há que ponderar a conservação do meio ambiente, e neste caso da fauna mais ameaçada.

Além disso, sabendo que a nossa Constituição adopta expressamente no seu artigo 66/2º este princípio, é de toda a lógica que Portugal, enquanto país defensor dos valores ambientais, seja parte na CITES. Adiante veremos quais as consequências a nível interno para o desrespeito das normas da CITES e da regulação interna da questão.

Ainda sobre as funções da CITES, é de referir que esta convenção oferece protecção a mais de 5 mil espécies de fauna (quer sejam transaccionados vivos ou não… argh!).

Mas como?

A CITES não funciona por si só, necessitando da colaboração dos Estados que dela fazem parte. Da CITES constam diversos anexos, uma listagem das espécies cujo comércio tem de ser autorizado. Essas autorizações são feitas através de um sistema de licenciamento, sendo nesta matéria que entra a regulamentação interna de cada Estado-membro.

Ora, a beleza do Direito do Ambiente surge também na sua diversidade e organização de fontes. Portugal, tal como a restante União Europeia é parte da CITES porque o Regulamento (CEE) nº 3626/82 (4) prevê a aplicação na Comunidade, a partir de 1 de Janeiro de 1984 da mesma. Da mesma feita, também ao nível comunitário, veio desenvolver a referida convenção o Regulamento (CE) nº 338/97 do Conselho de 9 de Dezembro de 1996 relativo à protecção de espécies da fauna e da flora selvagens através do controlo do seu comércio (alterado mais tarde por outros Regulamentos Comunitários mas que mantém as suas bases). Deste último regulamento constam também vários anexos com as espécies que se visa proteger bem como a forma como a sua importação, exportação e processo de licenciamento deve ser levado a cabo. Precisamente o artigo 4º do Regulamento dispõe sobre esse licenciamento que deve ser levado a cabo pelos Estados-membros. As proibições totais constam do artigo 8º. Não puderam deixar de me parecer relevantes alguns dos considerandos do Regulamento que dispõem o seguinte:

“(…) (3) Considerando que as disposições do presente regulamento não impedem que os Estados-membros possam tomar ou manter medidas mais estritas, no respeito pelo Tratado, nomeadamente no que se refere à detenção de espécimes de espécies abrangidas pelo presente regulamento; (…)
(13) Considerando que a execução do presente regulamento exige também que sejam designadas pelos Estados-membros autoridades administrativas e científicas; (…)
(15) Considerando que, para garantir uma execução eficaz do presente regulamento, os Estados-membros devem controlar de perto o cumprimento das suas disposições e, para o efeito, cooperar estreitamente entre si e com a Comissão; que isso implica a comunicação de informações relacionadas com a execução do presente regulamento;(…)
(17) Considerando que, para garantir o cumprimento do presente regulamento, é necessário que os Estados-membros imponham sanções adequadas e proporcionadas à natureza e gravidade das infracções; (…)”

Ao ler estes considerandos, não pude deixar de me interrogar: será que Portugal, enquanto bom vizinho, tratou de tomar medidas ainda mas estritas? E que medidas tomou concretamente? Serão as sanções mais adequadas? Será que a CITES tem, de facto, reflexo a nível interno?

Ora, a nível interno o Decreto-lei 211/2009 de 3 de Setembro bem como a Portaria 7/2010 de 5 de Janeiro dispõem sobre esta questão. Este Decreto-lei mantém os anexos/listagens de espécies dos Regulamentos Comunitários e introduz no seu artigo 4º um Registo Nacional CITES (que funciona no Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade) onde os intervenientes no comércio de espécies devem registar a sua actividade, verificando se está a decorrer de acordo com a lei. Existe ainda a necessidade de emissão de licença.

Além disso, tal como impõe o Regulamento Comunitário, é instituída pelo Decreto-lei no artigo 5º uma autoridade administrativa principal que deve zelar pelo cumprimento das disposições quer da própria convenção, quer comunitárias, quer internas, sobre este assunto bem como autoridades administrativas regionais no artigo 6º e uma autoridade científica no artigo 7º.

Mais uma vez devem aqui ser referidos os princípios próprios do Direito do Ambiente, nomeadamente o princípio da prevenção: antecipando-se que o comércio desenfreado de espécies animais, enquanto actividade humana, será prejudicial ao meio ambiente, adopta-se o meio dos licenciamentos e da inserção das espécies ameaçadas nestas listas bem como a fiscalização para impedir ou pelo menos minorar as consequências.

Mas quais as consequências previstas para aqueles que não respeitam estas imposições?

Estas situam-se ao nível meramente contra-ordenacional, nos artigos 25º e seguintes do referido decreto-lei. Constituem por isso contra-ordenações muito graves, as que constam daquele elenco, sujeitando-se os infractores a coimas e possivelmente às sanções acessórias do artigo 27º como a cessação compulsiva da actividade ou a impossibilidade de emissão de licenças a favor do infractor.

Do meu ponto de vista (e não querendo advogar exageradamente a intervenção da tutela penal na questão ambiental, pois concordo com o Prof. Vasco Pereira da Silva quando defende a preferência pela tutela sancionatória do ambiente pela via administrativa) estas sanções contra-ordenacionais parecem-me manifestamente insuficientes (isto apesar do RGIT, no seu artigo 97º consagrar como contrabando qualificado a importação ou exportação de mercadoria proibida pelo que se tal acontecer as espécies absolutamente impedidas de tal, estaremos perante um crime punível até cinco anos de prisão).

Voltando ao meu ponto inicial, o animal é em toda a medida vizinho do Homem e creio até que a questão animal será para muitos de nós mais sensível que grande parte das questões ambientais em geral, precisamente porque somos parentes tão próximos. Pense-se em quantos de nós se vêem compelidos a mudar de canal quando na televisão aparecem imagens de animais em sofrimento. Pense-se em quantos de nós para quem um animal de estimação é mais que uma companhia, é como um membro da família. Pense-se em quantos de nós mudariam para uma dieta vegetariana se presenciassem as verdadeiras condições em que alguns animais são mortos. A CITES e a sua regulamentação interna é só um exemplo para demonstrar a importância da protecção animal quer ao nível internacional quer ao nível interno. Creio que a questão animal necessita de maior tutela penal precisamente porque (no meu modesto entender) o bem jurídico ambiente – vertente animal, possui essa dignidade jurídica.

Contudo parece-me que enquanto os animais forem definidos como “coisas” no nosso ordenamento jurídico e não como uma realidade autónoma (entre a coisa que é objecto e o Homem a quem de facto se dirige o Direito), ainda teremos um longo e penoso caminho a trilhar enquanto os nossos silenciosos e inocentes vizinhos sofrem com as acções mais atrozes, da qual o comércio ilegal em condições penosas é apenas um exemplo, às mãos deste recente sublocatário do planeta Terra que é o Homem.

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