terça-feira, 15 de março de 2011

A ampla prevenção em Direito do Ambiente ou a autonomia de um princípio da precaução?

Boa noite a todos,

Em virtude da proposta de trabalho 1, publicada pelo Senhor Professor, deixo algumas reflexões sobre o princípio da precaução e sua (eventual) autonomização.

Cumprimentos,

Sara Leitão (subturma 3)


A ampla prevenção em Direito do Ambiente ou a autonomia de um princípio da precaução?

O princípio da prevenção é um dos princípios fundamentais em matéria de ambiente autonomizados pelo Professor VASCO PEREIRA DA SILVA (ao lado dos princípios do desenvolvimento sustentável, do aproveitamento racional dos recursos naturais e do poluidor-pagador).

Este princípio, presente no art. 66.º/2, a), CRP e no art. 3.º, a), LBA, tem por finalidade «evitar lesões do meio-ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas» (1). A sua função primordial é, pois, prevenir – e não tanto remediar, não obstante a possibilidade de influências recíprocas entre as duas realidades. CARLA AMADO GOMES destaca ser o acto autorizativo a sua expressão mais significativa (2).

Podem, do princípio da prevenção, ser dadas duas noções, como faz o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA: uma restrita, que remeta para a antecipação de perigos imediatos e concretos, numa lógica «imediatista e actualista», e uma ampla, que permita a antecipação de eventuais riscos futuros, ainda que não inteiramente determináveis, numa lógica «mediatista e prospectivista».

Porém, alguma Doutrina tem vindo a autonomizar do princípio da prevenção o princípio da precaução. Do conteúdo deste último se começará por tratar.

Para MALGOSIA FITZMAURICE (3), há três modelos passíveis de serem adoptados quanto à protecção do ambiente – o curativo, o preventivo e o antecipatório.

Rejeitando o primeiro quando actue sozinho, uma vez que não previne nem antecipa o risco, mas apenas procura tratá-lo, depois da sua ocorrência, restam dois. O modelo preventivo, diz o Autor, limita o dano, mas permite uma certa perturbação. O modelo antecipatório, ao contrário, nasce devido ao «desapontamento» que causou o recurso à comprovação científica do risco exigida pelo modelo preventivo. Para o modelo antecipatório, em matéria ambiental, a única certeza é a incerteza.

Poderá, assim afirmar-se que, para a doutrina que autonomiza o princípio da precaução do princípio da prevenção, este último diz respeito à antecipação e «prevenção» de acontecimentos incertos que conduzirão de certo a um resultado negativo para o ambiente.

Ao princípio da precaução caberá a «prevenção» de acontecimentos certos ou incertos de cujos efeitos nefastos no ambiente não há certeza, mas um grau maior ou menor de desconfiança. Assim, no campo da prevenção, existe certeza da causalidade mas incerteza do acontecimento; ao passo que no âmbito da precaução não há certeza da causalidade.

O princípio da precaução, que nasceu da tradução para inglês do “vorsorgeprinzip” alemão, foi materialmente consagrado, pela primeira vez, na Carta Mundial da Natureza, adoptada pela Assembleia Geral da ONU, em 1982, a propósito da poluição marítima, não obstante o seu “baptismo” se ter dado somente em 1987, na II Conferência do Mar do Norte.

Posteriormente, veio a Declaração do Rio, na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, a consagrá-lo, em 1992. O princípio 15 daquela Declaração dispunha que «Com o fim de proteger o meio ambiente, os Estados deverão aplicar amplamente o critério de precaução conforme as suas capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para se adiar a adopção de medidas eficazes em função dos custos para impedir a degradação do meio ambiente.».

Objecto de uma progressiva consolidação em Direito Internacional do Ambiente, o princípio da precaução consta hoje de muitos outros documentos, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, a Convenção sobre a Diversidade Biológica, o Protocolo sobre Biossegurança relativo à transferência, manipulação e utilização seguras de organismos modificados vivos resultantes da biotecnologia moderna, ou a Declaração de Nova Deli, aprovada pela International Law Association, entre outros.

Na União Europeia, o princípio da precaução, antes previsto no art. 174.º TCE, consta hoje do art. 191.º/2 TFUE.

No Ordenamento nacional, a precaução é expressamente enunciada, enquanto princípio, pelos arts. 3.º/1, e), 56.º, 89.º e 92.º da Lei da Água e pelo art. 7.º do Regime Jurídico relativo à Prevenção e Controlo Integrados da Poluição.

Em 1998, a Declaração de Wingspread decompôs o princípio da precaução em quatro vectores: (i) prevenção em face da incerteza; (ii) inversão do ónus da prova para quem pretende desenvolver a actividade; (iii) exploração das alternativas a acções potencialmente danosas e (iv) aumento da democracia participativa na tomada de decisões a este respeito.

Haverá que alertar, no entanto, para a necessidade de a antecipação de riscos eventuais, exigida pelo princípio da precaução, não se tornar excessiva ou exagerada, despindo o Direito do Ambiente de um mínimo de racionalidade. Deverá existir um grau mínimo de certeza, ou de desconfiança; aquilo que não se exige são provas irrefutáveis, uma objectividade que, as mais das vezes, nem sequer é possível obter.

A este propósito, a Comissão Europeia (4) esclarece: para que possamos socorrer-nos do princípio da precaução, é necessária a «identificação de efeitos potencialmente nocivos decorrentes de um fenómeno, de um produto ou de um processo», bem como «uma avaliação científica dos riscos que, devido à insuficiência dos dados, ao seu carácter inconclusivo ou ainda à sua imprecisão, não permitem determinar com suficiente certeza o risco em questão».

A Comissão distingue ainda dois aspectos no princípio da precaução. Ele permite a actuação propriamente dita, em face do risco possível (mais ou menos provável) mas deverá também permitir a escolha do modo de actuação. Este segundo nível decisório, que pressupõe a referida identificação do risco potencial, é uma resposta política a um problema, resposta essa que deverá depender do nível de risco a que aquela comunidade considera «aceitável» submeter-se.

Uma referência apenas se faça ao Acórdão de 24 de Novembro de 2006, pelo TAF de Coimbra, em que, no âmbito da decisão de concessão de uma providência cautelar, e depois de concluir pela falta de provas oferecidas por ambas as partes, afirma que, «havendo dúvida, a decisão é tomada num sentido in dubio pro ambiente».

Não aceito nem concordo com a inversão ónus da prova que, apesar de não manifestamente afirmada, foi tacitamente aceite por este tribunal.

Efectivamente, e como afirma CARLA AMADO GOMES (5) «a inversão do ónus da prova deve ser aceite com muitas cautelas, sob pena de violação intolerável do princípio do processo equitativo, na vertente do princípio da igualdade de armas».

O Professor VASCO PEREIRA DA SILVA manifesta-se, no entanto, contra a autonomização do princípio da precaução. Para o Professor, o princípio da precaução cabe num sentido amplo do princípio da prevenção por várias razões.

Em primeiro lugar, pela identidade de significado entre as expressões «prevenção» e «precaução».

Em segundo lugar, pelos critérios muitas vezes avançados para os distinguir. Assim, não é rigoroso distinguir «perigos» naturais de «riscos» humanos, já que ambos de interpenetram, nem será correcto fazer assentar essa autonomia num carácter actual ou futuro dos riscos, ou na recondução do princípio da precaução a uma presunção que obrigue os particulares a, antes de iniciarem uma actividade, provarem a ausência de riscos para o ambiente (isso seria demasiado gravoso ou mesmo incomportável).

Em terceiro lugar, porque, tendo o princípio da prevenção assento constitucional, a melhor solução seria interpretá-lo num sentido amplo, de forma a conseguir ali integrar também a precaução.

Não parece chocar-me, no entanto, a autonomização de um princípio da precaução, desde logo, porque me parece que este terá uma significação própria e estável o bastante para que essa «auto-subsistência» seja possível.

Quanto ao primeiro argumento enunciado, o Professor reconhece que não é decisivo.

A segunda razão que oferece para justificar o seu desacordo com esta autonomia pode ser tranquilizada por uma visão equilibrada do princípio da precaução, assente na incerteza (ponderada e não arbitrária) da causalidade, de forma moderada, não consubstanciando uma inversão pura e simples do ónus da prova (6) (7).

Mas o terceiro argumento utilizado pelo Professor parece, no entanto, bastante persuasivo. Se podemos ler um preceito constitucional de modo a torná-lo mais abrangente, porquê fechá-lo e excluir dele uma realidade de tanto relevo, como é a lata prevenção de riscos eventuais para todos nós?

Outra hipótese seria a de afirmar a existência de um princípio da precaução e, dentro dele, de uma sua vertente estrita, que respeitasse ao ideal acima afirmado como princípio da prevenção. Isto é, o princípio seria o da precaução e o sub-princípio o da prevenção.

JONATHAN WIENER (8) questiona-se sobre a diferença entre “precaution” e “prevention”, afirmando grosso modo que a prevenção se centra nos riscos conhecidos e a prevention nos não conhecidos. Mas o que serão «riscos conhecidos»? Responde o Autor: ou semelhante coisa não existe, caso em que a prevenção é vazia de conteúdo e o princípio da precaução se aplica a todos os riscos, ou, existindo riscos conhecidos e desconhecidos, o princípio da precaução apenas se aplicará a riscos sobre os quais existe uma verdadeira incerteza acerca da relação causa-efeito.

Os preceitos da Constituição que se referem à ideia de prevenção – e dos quais o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA retira também valores associados ao ideal de precaução - poderiam ser lidos dessa forma lata, captando primeiro a ideia de precaução e depois fechando-a aos riscos conhecidos (ou à causalidade conhecida).

Facto é que, independentemente da escolha terminológica que se faça, quer autonomizando os dois princípios, quer adoptando uma noção ampla de prevenção ou de precaução, incluindo um no outro, é de extrema importância que se tenha em conta que as medidas preventivas que têm de ser tomadas não se compadecem com a espera pela certeza absoluta (ou «quase absoluta»), que muitas vezes só chega já tarde demais.

______________

(1) VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde, Cor de Direito, Almedina, Coimbra, 2005, p. 66

(2) CARLA AMADO GOMES, Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito Administrativo Especial, V. I, Coord. PAULO OTERO e PEDRO GONÇALVES, Almedina, Coimbra, 2009, p. 190

(3) MALGOSIA FITZMAURICE, Contemporary Issues in International Environmental Law, Edward Elgar, Cheltenham, 2009, p. 3

(4) Comunicação da Comissão das Comunidades Europeias relativa ao princípio da precaução, de 2.2.2000, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2000:0001:FIN:PT:PDF

(5) CARLA AMADO GOMES, As providências cautelares e o princípio da prevenção: ecos da Jurisprudência, Sep. de: Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, nº 10, Porto: Instituto Politécnico do Porto, 2007

(6) Que, de resto, pode conduzir a uma probatio diabolica.

(7) E o facto de não se aceitar a inversão do ónus da prova puro e simples como resultado do princípio da precaução também não obsta a que se considere o princípio da precaução como princípio. De resto, outros princípios colidirão entre si, sem que, por isso, percam a natureza de princípios.

(8) JONATHAN WIENER, Precaution, in The Oxford handbook of international environmental law, Oxford University Press, New York, 2007, p. 604

Sem comentários:

Enviar um comentário