sábado, 21 de maio de 2011

A Acção Popular

1. A Acção Popular como Instrumento Privilegiado na Tutela de Interesses Difusos, maxime do ambiente


1.1 O Direito ao Ambiente como Direito Subjectivo?

A análise da configuração da acção popular ao serviço do ambiente e da sua relevância pressupõe um breve excurso sobre questões prévias.
Qual a especificidade inerente à natureza do direito ao ambiente que permite explicar a inadequação da aplicação do regime processual típico, mormente no que diz respeito à legitimidade e, consequentemente, a relevância da acção popular na tutela do mesmo?
O direito ao ambiente conhece consagração constitucional, nos termos do art. 66º CRP. Numa primeira interpretação, parece resultar a sua configuração como direito subjectivo. Todavia, a essa qualificação, não obstante a letra do artigo, parece opor-se a natureza intrínseca do mesmo. Não é axiologicamente rigoroso visto que se trata de um bem cuja fruição pertence aos membros da comunidade em geral, circunstância incompatível com a estrutura do direito subjectivo que pressupõe a existência de um substrato susceptível e apropriação individual.
Pelo que, considero que a sua configuração deve passar pelo conceito de interesse difuso. Apesar de serem avançadas várias definições pode-se dizer que é difuso o interesse, juridicamente reconhecido, de uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos, eventualmente unificada mais ou menos estreitamente com uma comunidade e que tem por objecto bens não susceptíveis de apropriação exclusiva.



1.2 Alargamento do Conceito de Legitimidade Activa

O problema da tutela judicial dos interesses difusos está especialmente associado a um problema de direito processual, a legitimidade para agir. De facto, as vias processuais típicas não são compatíveis com a protecção dos interesses difusos, em virtude de não reconhecerem legitimidade activa aos entes representativos desses interesses, ou aos cidadãos individualmente. Como conclui João Correia, no seu artigo sobre interesses difusos e legitimidade processual, o direito adjectivo virou as costas aos direitos económicos, sociais e culturais, criando obstáculos à sua efectivação; a conexão entre direito substantivo e direito adjectivo foi substituída por uma relação conflituante, ou, no mínimo, pelo total desacompanhamento do direito subjectivo pelo direito adjectivo.
A principal virtualidade da acção popular, consagrada no artigo 52º/3 CRP e regulada na lei 83/95, reside, assim, no colmatar das deficiências / insuficiências subjacentes a uma tutela jurisdicional baseada em concepções exclusivamente individualistas. Esta concepção redutora, na medida em que se confina à tutela de direitos subjectivos é insustentável em face da protecção reclamada para bens de fruição colectiva, de que é exemplo o ambiente, em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º CRP). Deste modo, o alargamento da legitimidade, previsto na lei 83/95, (pois a legitimidade não é aferida com base no interesse directo e pessoal, art. 55º/1 a)) potencia uma extensão de controlo dos bens de fruição colectiva, prosseguindo uma verdadeira descentralização ao permitir uma intervenção processual a todos os que, por força da natureza inapropriável dos bens ameaçados, não têm legitimidade com base na noção de direito subjectivo e da correspectiva legitimidade singular que lhe está associada.
Por conseguinte, podemos configurar a acção popular como instrumento que atribui aos cidadãos faculdades de intervenção processual, quer na jurisdição comum, quer na jurisdição administrativa na tutela de bens jurídicos supra-individuais. Impõe-se uma precisão, a acção popular não configura um tipo de acção, mas antes um mecanismo através do qual se procede à extensão da legitimidade procedimental e processual.
No que diz respeito ao seu âmbito objectivo rege o artigo1º/2 Lei 83/95 que enumera a título exemplificativo os interesse que se pretende ver tutelados, maxime o ambiente.
No atinente ao seu âmbito subjectivo dispõe o artigo2º/1 e 2. Em conformidade, Paulo Otero opera distinção entre:
- Acção popular individual: onde têm legitimidade quaisquer cidadãos no gozo dos seus direito civis e políticos.
- Acção popular colectiva: a lei conferiu legitimidade às associações e fundações defensoras dos interesses a que se refere o art. 32º/3 CRP, desde que se verifiquem determinados requisitos art2º/1 e 3.
- Acção popular pública: (art. 2º/2) conferindo às autarquias locais legitimidade activa processual relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.
Importa apenas fazer breve referência à perplexidade provocada pelo art. 2º/1, in fine ( «independentemente de terem ou não interesse directo na demanda»). Esta só se pode justificar dada a lógica segundo a qual a lei 83/95 é aplicável a interesses difusos e colectivos e, igualmente, a interesses individuais homogéneos, sendo a estes últimos que se reporta a referência ao interesse directo.
Contudo, outras potencialidades podem ser apontadas: assim, em face da multiplicidade das lesões, ao ambiente fazer depender a efectivação da sua tutela da intervenção da administração e ministério público, seria impraticável, ainda, é de notar, a circunstância da própria conduta da administração, a mais das vezes, ser atentatória dos interesses que se visam proteger.
Por isso se pode dizer que a acção popular configura o meio mais adequado para a tutela de interesses difusos, considerado como «uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentas constitucionalmente consagrados (…) cujo objecto é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, enquanto interesses de toda a comunidade» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada)


1.3 Reforço dos Poderes do Juiz

A Lei nº 83/95 determina um alargamento dos poderes do tribunal nas acções populares relativas a interesses difusos potenciando, deste modo, uma compatibilização entre a iniciativa dos indivíduos ou das associações e o empenhamento do tribunal na tutela daqueles interesses.
Desde logo, foi atribuída ao tribunal a faculdade de aferir da correcção da utilização da acção popular e da representação que é assumida pelo demandante. Ao abrigo da Lei nº 83/95, são dois os momentos em que esse controlo pode ser exercido pelo tribunal: - um deles é o momento do despacho liminar, dado que a petição inicial deve ser liminarmente indeferida quando o tribunal entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido formulado pelo demandante (artº 13º da Lei nº 83/95); - o outro momento é o da sentença final, dado que o tribunal pode decidir excluir a vinculatividade erga omnes da sua decisão com fundamento em motivações próprias do caso concreto (artº 19º, nº 1, da Lei nº 83/95). Quer dizer: o tribunal pode controlar a justificação e a adequação da acção popular no momento do despacho liminar, mas também pode "desqualificar" essa acção aquando do proferimento da sentença final através da substituição da sua vinculatividade geral por uma restrição subjectiva dos seus efeitos.
Por outro lado, cabe ao juiz a iniciativa na recolha da matéria probatória, sem estar vinculado à iniciativa das partes, nos termos do art.º 17º da Lei nº 83/95. A concessão destes poderes inquisitórios ao tribunal da acção popular justifica-se pela necessidade de assegurar uma efectiva igualdade entre as partes e de proteger os interesses dos ausentes.
Ainda, nos termos do artigo 18º, pode o juiz, oficiosamente, atribuir efeito suspensivo ao recurso, sempre que ele não o tiver já, e sem que as partes sejam ouvidas ( a audição das partes neste âmbito ditada por princípios da verdade material e da justa composição de litígios é defendida por Carla Amado Gomes em Farsa em dois actos: enganos e desenganos sobre o artigo 18º lei 83/95) de molde a evitar a produção de danos irreparáveis ou de difícil reparação, garantindo-se, desta forma, a não frustração do efeito útil da decisão judicial.
De facto, atenta a natureza frágil dos bens de fruição colectiva, o factor tempo deve ser valorado com especial acuidade. Na verdade, a urgência mais do que um factor de conformação externa da justiça dela faz parte. Pois, esta pressupõe antes de mais a celeridade do processo e a utilidade dos efeitos produzidos pela decisão judicial.
A ampliação dos poderes do juiz é especialmente justificada no âmbito de acções em que esteja em causa a defesa de bens de fruição colectiva, pois a ocorrência de danos, neste âmbito, culminaria na perda de neutralidade do juiz, pondo em causa o compromisso por ele assumindo na salvaguarda do interesse geral.


1.4 Eficácia do Caso Julgado

Neste âmbito, a regra geral é a da eficácia erga omnes da decisão judicial transitada em julgado, Esta regra conhece duas ressalvas: improcedência do pedido por insuficiência de provas (limite objectivo) e inoponibilidade a quem se auto excluiu da representação (limite subjectivo).
Esta última excepção deve ser contextualizada à luz do regime vigente. De facto, foi importado do modelo norte-americano das class actions, o mecanismo que possibilita ao potenciais titulares de interesses protegidos a faculdade de se excluírem da representação, até ao termo da fase de produção de prova ou equivalente. Nada fazendo ou dizendo, o seu silêncio tem o valor de aceitação da representação.
Para o efeito, o juiz, logo após o recebimento da petição, está obrigado a ordenar a citação de todos os potenciais interessados convidando-os a exercer uma das duas alternativas. A citação deverá ser feita através de anúncio ou anúncio difundido em meio de comunicação social ou publicitados em edital, consoante estejam em causa interesses gerais ou geograficamente localizados
Esta solução é objecto de críticas por parte de alguma doutrina pois esta aplica-se indistintamente a interesses difusos, colectivos e individuais homogéneos. Se em face da indeterminabilidade dos titulares dos dois primeiros esta solução é compreensível, o mesmo não se pode advogar em relação aos últimos, pois estes são verdadeiros direitos subjectivos. Além disso, a inidoneidade do meio da citação pode pôr em causa o acesso à justiça e aos tribunais.



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