sábado, 21 de maio de 2011

A Inconstância da Relação Autorizativa Ambiental e a Tutela das Expectativas dos Particulares

A Prevenção e Controlo Integrados da Poluição (PCIP) veio trazer uma nova perspectiva às tradicionais estratégias sectoriais de combate à poluição, vindo reconhecer que a abordagem integrada no controlo da poluição favorece a protecção do ambiente no seu todo.


Na União Europeia, a publicação da Directiva nº 96/61/CE, do Conselho, de 24 de Setembro, relativa à PCIP (revogada pela Directiva nº 2008/1/CE, do Parlamento e do Conselho, de 15 de Janeiro), marcou o início da concretização da nova política.


Estão abrangidas pelo cumprimento da Directiva certas actividades económicas a que está potencialmente associada uma poluição que se considera significativa e que é definida de acordo com a natureza e/ou a capacidade de produção das instalações. O funcionamento das instalações onde se desenvolvem actividades abrangidas pela PCIP está condicionado à obtenção de uma Licença Ambiental. Assim, foi este o instrumento eleito pela UE como meio preferencial de promoção da prevenção e controlo integrado da poluição.


Transpondo a Directiva n.º 2008/1/CE, o regime do licenciamento ambiental (doravante, RLA) consta do DL 173/08, de 26 de Agosto.


A licença ambiental[1] assume carácter temporário e precário. A licença é temporária na medida em que é concedida por um período determinado, findo o qual caduca, a menos que seja solicitada a sua renovação (art. 18.º, n.º 2, al. g) e art. 20.º do RLA). Por seu turno, é precária na medida em que a sua renovação pode ser exigida, antes do respectivo termo, por iniciativa da administração, em virtude da superveniência de novas circunstâncias, de facto ou de direito que estão na base da sua atribuição (art. 20.º, n.º 3 e 4 do RLA).


Ora, é precisamente o carácter precário que tem gerado maior discussão junto da doutrina. O art. 20.º, n.º 3 e 4 do RLA consagra a figura da revisão da licença ambiental, por superveniência de factores físicos ou técnicos que importem uma necessidade de adaptação do conteúdo daquela a uma nova realidade. Neste caso, antecipa-se o termo final da licença (cuja duração não pode exceder 10 anos, por força do disposto no art. 18.º, n.º 2, al. g) RLA) devido à alteração de circunstâncias que determinam a necessidade de rever os termos estipulados na licença. Discute a doutrina se a licença é um acto constitutivo de direitos e quem suporta os riscos (leia-se custos) da imposição de uma renovação antecipada.


No que toca à primeira questão, mesmo que se considere ser a licença ambiental, por si só, um acto constitutivo de direitos, como defende o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA[2], a possibilidade de antecipação do termo final da licença por decisão administrativa, estabelecida no art. 20.º, n.º 3 e 4 do RLA, afasta a aplicação do regime geral constante do art. 140.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo.


Bem mais importante é a questão que se levanta em torno da tutela das expectativas legítimas do destinatário da licença. De facto, se se justifica que a Administração não fique vinculada por uma licença que com o passar dos anos se torna obsoleta, permitindo e dando cobertura jurídica a níveis “estrondosos” de poluição, face à rapidez da evolução tecnológica e à proporcional degradação do ambiente, também não se justifica ignorar por completo o princípio da confiança e da segurança jurídica que deve acompanhar a fruição das posições jurídicas já subjectivizadas e adquiridas na esfera dos particulares e reconhecidos pelo Estado enquanto tal. Deste modo, tal como refere o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, estamos perante um conflito de bens e valores jurídico fundamentais que opõe a defesa do ambiente, constitucionalmente consagrada enquanto tarefa fundamental do Estado – arts. 9.º, als. d) e e) e 66.º, n.º 2 CRP – à protecção de direitos adquiridos e à garantia de segurança e de estabilidade jurídicas[3].


Se é certo que o particular que beneficia de uma licença ambiental deverá contar com a possibilidade de alterações supervenientes, já que a lei expressamente prevê essa possibilidade, também não nos podemos esquecer que a adopção das medidas impostas pela Administração, seja a adopção das mais recentes Melhores Tecnologias Disponíveis (MTDs) ou a utilização de outro tipo de recursos, comporta elevados custos para os particulares, muitas vezes desproporcionados, face ao benefício adveniente da actividade que desenvolve.


Segundo a Prof.ª CARLA AMADO GOMES, “o risco de mutação da licença ambiental corre por conta do operador, sem que a Administração o deva indemnizar por qualquer dano emergente que advenha do custo adicional de novas técnicas ou de diminuição da produção com vista à redução de emissões”. Esta Professora ressalva apenas as situações de revisão intensa e muito antecipada da licença, que se traduza na incapacidade de suporte dos custos de inovação e na impossibilidade de amortização dos custos de instalação[4].


No meu entender, é de excluir uma solução que isente totalmente a Administração de qualquer responsabilidade. Se se pode dizer que as imposições ulteriores mais não fazem do que impor ao particular que beneficiava daquele acto, a adopção de medidas para poder continuar a beneficiar desse acto, se essas imposições ficarem totalmente a cargo do particular, poderão ser superiores à sua capacidade económica e desproporcionais relativamente ao proveito económico retirado da actividade, podendo mesmo, deixar o particular sem alternativa que não seja o cessar da sua actividade.


Segundo o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, a solução para este conflito de bens e valores fundamentais deve ser encontrada “à luz do princípio constitucional da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (art. 266.º, n.º 1 CRP)[5]. Deste modo, este Professor admitindo a consagração de um regime mais flexível de revogação da licença ambiental, adequado e proporcional à defesa do ambiente, defende a indemnização por actos lícitos dos titulares da licença revogada.


A responsabilidade pelo acto lícito ou indemnização pelo sacrifício está consagrada no art. 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas). Estabelece esta disposição que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender -se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado”. O legislador esclareceu ainda, no art. 2.º deste diploma o que se deve entender por danos especiais e anormais: “consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito”.


Ora, já vimos que a renovação antecipada da licença ambiental ou a imposição da adopção de novas medidas, em virtude de uma alteração das circunstâncias (v. g. alterações tecnológicas, MTDs, mudança de parâmetros decisórios), pode vir a infligir danos na esfera jurídica do particular. Serão sempre esses danos especiais e anormais?


Não me parece que assim seja. De facto, tal como refere o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, são concebíveis situações em que o novo condicionamento imposto é tão gravoso que quase impede o desenvolvimento da actividade, ou a sujeita a custos de tal modo incomportáveis, em que não será de excluir a sua semelhança com um caso de expropriação[6].


Em sentido semelhante, entende a Prof.ª CARLA AMADO GOMES que “a licença renovada, na qual se verteu a reponderação administrativa adveniente da consideração dos aspectos a que alude o nº 3 do artigo 20.º do RLA, deve ser entendida como um acto lesivo para os efeitos de impugnação, administrativa e contenciosa. Os gravames renovados que passarão a impender sobre o operador poderão ser superiores à sua capacidade económica e desproporcionados em face do retorno que a actividade industrial lhe proporciona. Não é de descartar a possibilidade de tal renovação implicar a cessação da actividade económica e o subsequente ressarcimento do operador, a título de indemnização por acto lícito, caso o prejuízo sofrido seja especial e anormal[7].


É esta a posição que entendo ser a que melhor concilia os interesses em conflito.


A título de última deixa, não posso deixar de referir outro aspecto também realçado pela Prof.ª CARLA AMADO GOMES, que se prende com o cruzamento de interesses que a licença ambiental envolve: “Por um lado, o operador desenvolve uma actividade económica que se traduz num benefício directo para si e indirecto para a comunidade em que se situa (geração de emprego). Por outro lado, o operador prossegue um interesse individual titulado pela licença, mas os modos que esta integra são reflexo da sua vocação de promoção de interesses públicos (ambientais e sanitários). Nessa medida, há uma repartição de custos na actualização da licença, que a lógica da alteração contratual motivada por alteração das circunstâncias, prevista no artigo 437.º do Código Civil, determina que deva ser equitativamente suportada pela Administração, caso a actualização importe num desequilíbrio insustentável da relação contratual. Se virmos a situação desta perspectiva, estaremos fora da "indemnização por facto lícito" e dentro de uma indemnização paracontratual, similar àquela que detectamos no âmbito da contratação pública e da "indemnização por imprevisão"[8].


Em suma, a licença ambiental é um acto de vigência temporária, de forma a permitir à Administração um “check up” periódico da eficácia ambiental da actividade por si desenvolvida. Deste modo, tratando-se de actos administrativos sujeitos a um prazo de vigência pré definido, é razoável que durante esse período (que, relembre-se, não pode ultrapassar 10 anos), o particular saiba aquilo com que pode contar por parte da Administração em matéria de parâmetros ambientais relativos ao funcionamento da sua instalação e à exploração da sua actividade. Se nem todos os casos configuram situações de gravidade e “surpresa” de modo a que justifiquem o apoio financeiro ao particular (tais como uma licença ambiental vitalícia ou concedida por um período demasiado longo), casos haverá em que deve haver uma reparação financeira através da indemnização pelo sacrifício, mecanismo especialmente vocacionado a uma adequada protecção dos particulares por danos resultantes do exercício da função administrativa.


Nídia Mateus, Subturma 5





[1] O art. 2.º, al. i) do RAL define “licença ambiental” como sendo a “decisão escrita que visa garantir a prevenção e o controlo integrados da poluição proveniente das instalações abrangidas pelo presente decreto-lei, estabelecendo as medidas destinadas a evitar, ou se tal não for possível, a reduzir as emissões para o ar, água e solo, a produção de resíduos e a poluição sonora, constituindo condição necessária da exploração dessas instalações”.



[2] Para este Professor, a possibilidade de antecipação do termo final da licença, por decisão administrativa, equivale à consagração de um poder de revogação de actos constitutivos de direitos (VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, 2.ª Reimp. da edição de Fevereiro 2002, Almedina, Coimbra, 2005, p. 204).



[3] Idem.



[4] CARLA AMADO GOMES, “Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. I, Coord. PAULO OTERO e PEDRO GONÇALVES, Almedina, Coimbra, 2009, p. 224.



[5] Verde…, p. 205.



[6] Verde…, p. 205, nota 2.



[7] CARLA AMADO GOMES, “O procedimento de licenciamento ambiental revisitado, in Actualidad Jurídica Ambiental, 30 de Julio de 2010, p. 17, consultado em http://www.actualidadjuridicaambiental.com/wp- content/uploads/2010/07/AMADOGOMES300720101.pdf.



[8] CARLA AMADO GOMES, “O Procedimento…, p. 18. Segundo esta Professora, sempre que ocorra um prejuízo simultaneamente imprevisível e insuportável, o desequilíbrio da relação autorizativa, gerado pela superveniência de circunstâncias imprevisíveis, terá de ser resolvido de duas formas: ou a Administração, reconhecendo o interesse público da actividade exercida pelo particular, subsidia os custos das inovações; ou, tal subsídio não se revela justificado, do ponto de vista da prossecução do interesse público através da continuação do exercício da actividade pelo titular da autorização. Nas situações em que a administração opte pelo subsídio, estaremos perante um “subsídio por imprevisão” (“Da aceitação de um regime de modificação do acto administrativo por alteração superveniente dos pressupostos, e do controlo jurisdicional desta competência: pistas de reflexão, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, Vol. III, Dez. 2007, consultado em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=65580&ida=65534).

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