sábado, 21 de maio de 2011

Constituição Verde

Apesar da questão ambiental ser uma novidade, e como tal a sua evolução não é tão longa quanto outras questões jurídicas, a verdade é que, já em 1822, com a primeira Constituição portuguesa, havia preocupação com a protecção do Ambiente, na medida em que era cometida às câmaras municipais a tarefa de promover a plantação de árvores nos baldios e nas terras dos concelhos, de acordo o art.223º desta Lei Fundamental.

Contudo, alguma doutrina defende que este preceito mais não era do que um incentivo ao desenvolvimento rural, tal como, na Constituição de 1933 (art.52º), quando se apelava à conservação dos monumentos naturais, o objectivo era a preservação do património cultural, tendo subjacente uma perspectiva estética da natureza.

Entre 1950 e a primeira metade da década de 70, as referências constitucionais eram raras e dispersas, não estando integradas numa visão globalizante.
Contudo, com a Constituição portuguesa de 1976 (CRP) consagrou-se explicitamente o direito ao ambiente, a par de um conjunto de incumbências do Estado e da sociedade, fazendo parte, desta forma, da Constituição material.
Simultaneamente a esta evolução no âmbito da ordem jurídica portuguesa, também outras constituições atribuíram a característica da fundamentalidade ao direito do ambiente, se bem que esta universalização não signifique, só por si, que a efectividade das normas se mostre muito forte .

Revisões constitucionais

As revisões constitucionais mais importantes ao nível do direito ao ambiente, foram as de 1982, 1989 e a de 1997.
Quanto à primeira, esta renovou a redacção do art.66º/3, que passou a distinguir a lesão de bens naturais e a lesão directa na esfera pessoal, assim como aditou uma nova incumbência ao Estado, nomeadamente a que está prevista na actual al. e) do art.9º CRP.
Relativamente à segunda revisão, houve uma reforma significativa do art. 66º/2 b), na medida em que foi complementada com a referência ao “equilibrado desenvolvimento sócio económico”, assim como os nºs 3 e 4 foram suprimidos, tendo o primeiro sido integrado no art.52º/3 CRP. No entanto, este último preceito não distingue lesão de interesses colectivos da lesão de interesses individuais, o que constitui um retrocesso face à distinção feita pela anterior revisão.
A revisão constitucional de 1997 acrescentou a categoria de direitos ambientais no âmbito do art.9º d) quanto à tarefas fundamentais do Estado, não alterando a epígrafe do Título III em conformidade. Por outro lado, acrescentou ao art.66º/ 2 a referência ao desenvolvimento sustentável; estabeleceu a relação entre o aproveitamento racional dos recursos naturais e a solidariedade intergeracional, na al. d) in fine; reforçou a ideia de horizontalidade da política ambiental nas al. e), f) e h); e, alertou para a necessidade de promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente, na al. g) do mesmo preceito.
Pode concluir-se, assim, que ao longo desta evolução, tentou densificar-se o direito ao ambiente, no sentido da sua transversalidade e respectivos objectivos.


Incumbência fundamental do Estado

A protecção do ambiente não constava, como tarefa fundamental do Estado, do texto original da Constituição, tendo sido introduzida com a revisão constitucional de 1988,correspondendo, desta forma, a uma valorização acrescida do direito ao ambiente (art.9º e) CRP), cujo âmbito concretiza os elementos caracterizadores da república portuguesa, enquanto colectividade política que compartilha de uma identidade cultural historicamente configurada.

Há, no entanto, quem afirme uma tendencial irrelevância constitucional desta consagração , não só porque há importantes exemplos de Estados que prosseguem políticas de protecção do ambiente sem terem plasmado tal objectivo a nível constitucional, como é o caso dos E.U.A. (National Environmental Policy Act, em 1969), como também o facto de existir esta consagração não ser determinante da adopção de políticas públicas de conservação e promoção ambientais, já que sistematicamente trata-se de normas programáticas, dependentes da criação de condições de realização.
Esta incumbência fundamental do Estado é concretizada ao longo da Constituição, assegurando outros direitos, como os de defesa através da acção popular, e impondo várias medidas, nomeadamente arts. 52º/3, 65º/2 a), 66º/1 e 2, 78º/1 e 2 c), 81º d) e m), 90º e 93º/1 d) e 2 da Constituição.

A dimensão objectiva do direito ao ambiente, traduzida nesta tarefa fundamental do Estado, concretiza-se não só no dever do legislador de emitir as normas necessárias à realização dos princípios e das disposições constitucionais, cuja violação pode levar à inconstitucionalidade tanto por acção como por omissão, mas também na vinculação da Administração e dos tribunais pelas normas e princípios constitucionais nesta matéria, fornecendo critérios de decisão e limites à margem de livre apreciação administrativa, garantindo-se a tutela plena e efectiva dos valores fundamentais em questão pela via judicial.
Releva ainda, quanto à competência legislativa, não só a reserva relativa da Assembleia da República quanto às bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural (art. 165º/1 g) CRP), assim como a competência das assembleias legislativas regionais para as desenvolver em função do interesse específico das regiões (art. 229º/1 c) CRP). Existe, assim, uma complementaridade, interdependência e colaboração entre o Estado, as regiões autónomas, e também as autarquias locais (arts.65º/4 e 235º ss. CRP).
Por outro lado, não existe um exclusivo das entidades públicas na concretização das incumbências e na efectivação dos direitos, já que o Estado faz apela e dá apoio a iniciativas dos cidadãos (art.66º/2 CRP).

Finalmente, é importante referir, quanto a esta matéria, o carácter instrumental do ordenamento do território, relativamente à política de habitação, urbanismo, e de protecção da natureza, tal como o da referência à identidade nacional ou cultural comum, que tem subjacente a premissa de que a classificação e protecção de paisagens e sítios têm como objectivo garantir a preservação de valores culturais de interesse histórico e artístico (arts. 9º e) e 66º/2 c) CRP).

Inclusão nos direitos fundamentais

Neste âmbito, alguns autores defendem que o direito ao ambiente inclui-se na terceira geração de direitos fundamentais, tal como o direito ao desenvolvimento, à participação no património da humanidade e à autodeterminação, cujo início ocorreu com a transição do século XX para o século XXI.
No entanto, de acordo com a doutrina que não defende a repartição dos direitos fundamentais em gerações , mas antes por classes, defende que o direito ao ambiente participa do âmbito dos direitos, liberdades e garantias, como dos direitos económicos, sociais e culturais; por outro lado, afirma-se, ainda, que estamos antes no âmbito dos direitos dos povos ou das colectividades, inconfundíveis com os direitos das pessoas.

Após as importantes revisões constitucionais acima enunciadas, a verdade é que actualmente o art.66º abrange inúmeros bens que já são protegidos através de outros preceitos constitucionais, assim como a tutela subjectiva (art.66º/1 CRP) é bastante imprecisa, reflectindo-se nas questões de ressarcimento. Assim, existem três questões às quais é necessária dar uma resposta:
•O que é “ambiente?”;
•O que é o “direito ao ambiente?”;
•O que é o “dano ecológico?”.

No que concerne à primeira questão, trata-se de ultrapassar a descaracterização do âmbito de protecção da norma, que ocorreu com a inclusão, nas várias alíneas do art.66º/2, de referências a objectivos conexos mas autónomos relativamente à realidade ambiental, sendo que esta inclusão poderia ter ocorrido no âmbito das incumbências fundamentais do Estado, apelando-se, dessa forma, à harmonização entre os vários objectivos. A forma de responder a esta questão, segundo certa doutrina , é fazendo-se uma interpretação conforme à Constituição, na versão original, de forma a subtrair-se a este preceito tudo o que nele não se deveria consagrar, circunscrevendo-se, assim, o objecto ao conjunto de bens ambientais naturais a que alude o art.6º da Lei de Bases do Ambiente.

O conceito de ambiente é, não só unitário, como também estrutural e funcional, na medida em que engloba um conjunto de sistemas ecológicos, físicos, químicos e biológicos, assim como factores económicos, sociais e culturais, e estes, por seu turno, são interactivos entre si. Este conceito distingue-se do da qualidade de vida, já que esta traduz um resultado, enquanto aquele é um valor em si.
Relativamente à segunda questão, é necessário esclarecer que há quem entenda ter ocorrido no art.66º/1 uma adesão acrítica à fórmula do princípio 1 da Declaração de Estocolmo, contextualizada numa época em que ocorreu a ascensão dos territórios recém-saídos de experiências colonizadoras à independência, e dessa forma associou-se o ambiente a uma realidade relacionada com o bem-estar físico e psíquico das pessoas, com a sua qualidade de vida. Assim, deve ser afastada a dimensão pretensiva, já que a fruição de um bem de natureza colectiva como o ambiente incorpora um interesse de facto e não um direito (art.52º/3 CRP), valorizando-se a vertente impositiva, que incumbe a cada cidadão, dependendo da sua actividade em concreto, deveres de conteúdo diferenciado em razão do impacto causado ao ambiente .
Por último, no que respeita ao dano ecológico, a descaracterização do objecto do art.66º/2 em nada contribui para a distinção entre dano ecológico e danos ambientais, os quais não são mais do que danos pessoais, de um indivíduo ou de um grupo, cobertos por um conjunto de outras disposições que consagram os direitos fundamentais clássicos. Apesar desta distinção ter sido feita em 1982, devido à referência a “lesão directa”, no antigo nº3 do art.66º, a verdade é que hoje o art.52º/3 não a consagra; mas é necessária, não só para atribuir um efeito útil ao art.66º, como também pelo facto dos contornos de ambos serem diferentes, nomeadamente quanto à extensão, ao cálculo do prejuízo, e aos limites da indemnizabilidade. O dano ecológico, refere-se assim a bens colectivos lesados, em contraposição com os danos ambientais, enquanto danos pessoais ou individualizáveis.

Por fim, o direito ao ambiente, enquanto direito constitucional fundamental, é um direito à abstenção de acções nocivas por parte do Estado e de terceiros, enquadrando-se nos direitos análogos consagrados no art.17ºCRP, por um lado; por outro, é um direito positivo a uma acção do Estado, no sentido da defesa do ambiente e de controlo das acções de degradação ambiental, impondo-se-lhe as correspondentes obrigações, sendo, desta forma, um genuíno direito social. No entanto, diferentemente do que ocorre com outros direitos sociais, em que se trata de criar ou realizar o que ainda não existe, o direito ao ambiente visa garantir o que ainda existe e recuperar o que deixou de existir ou se degradou.
A primeira vertente mencionada leva à existência de um dever de defesa do ambiente (art.66º/ 1 in fine), na medida em que há a obrigação de não atentar contra o ambiente, obrigações positivas diversas, como a de tratar resíduos, e o dever de impedir os atentados de outrem, incluindo pelo exercício da acção popular, já que se trata de um bem colectivo constitucionalmente protegido.

•Princípios fundamentais subjacentes:

o Princípio da prevenção – os responsáveis por acções ou omissões susceptíveis de originar incidências ambientais devem evitar, sobretudo, a criação de efeitos danosos para o ambiente (art.66º/2 al. a), c) e d)). Por vezes, tem sido autonomizado deste princípio, o princípio da precaução, mas como defende alguma doutrina , e bem, esta autonomização não é necessária, devido à identidade vocabular e estrutural, devendo-se optar por uma noção ampla de prevenção;

o Princípio da participação colectiva – os indivíduos ou grupos sociais intervêm na execução da política ambiental (arts.52º/3 e 66º/2);

o Princípio da cooperação – procura de soluções concertadas com outros países ou organismos (art.81º l));

o Princípio do equilíbrio ou do desenvolvimento sustentável – criação de meios do ambiente adequados a assegurar a integração das políticas de desenvolvimento económico, social e cultural e de protecção da natureza (art.66º/2 b) e d) e arts. 81º l) e 90º), respeitando-se a solidariedade entre gerações (justiça intergeracional), não só no que respeita à transmissão da herança cultural e natural, como à não imposição de encargos excessivos e abusivos a estas gerações futuras; e a proporcionalidade entre os custos ambientais e os benefícios de certas medidas, sendo assim necessária uma fundamentação ecológica das decisões jurídicas de desenvolvimento económico;

o Princípio do aproveitamento racional dos recursos disponíveis (art.66º/2 d) – adopção de critérios de eficiência ambiental, na tomada de decisões dos poderes públicos, de forma a racionalizar o aproveitamento dos recursos naturais;
o Princípio do poluidor - pagador – os sujeitos económicos, que são beneficiários de certa actividade poluente, devem também ser responsáveis pela compensação dos prejuízos que resultam desta para toda a comunidade, sendo que esta compensação deve ser calculada não só com base nos prejuízos, como também nos custos da reconstituição da situação e das medidas de prevenção;

o Princípio da informação – assegurar a publicidade de forma a possibilitar não só a crítica, como também o exercício do dever de participação consciente.

È importante ainda referir a dimensão de transversalidade, consagrada nas al. f), g) e h) do art.66º/2, consistindo na aplicação da ideia de desenvolvimento sustentável em articulação com políticas de âmbito sectorial, enquanto extensão horizontal a todos os sectores, estando, assim, subjacente um princípio de integração.

Conclusão
Apesar do direito ao ambiente contender menos com direitos subjectivos do que com interesses colectivos, quando estes radicam em certas e determinadas pessoas ou quando confluem com certos direitos, tais interesses podem reverter em verdadeiros direitos fundamentais.

Por outro lado, as posições jurídicas subjacentes ao direito do ambiente têm por sujeitos passivos não apenas o Estado e as entidades públicas, como também entidades privadas, continuando a existir, desta forma, uma unidade de protecção dos bens ambientais no contexto da Constituição (art.18º/1 CRP).
Quanto ao dever de defender o ambiente, este é um verdadeiro dever fundamental, e não um mero efeito externo da previsão de um direito, cuja violação tem as necessárias consequências jurídicas (art.52º/3 CRP).

Enquanto reconduzível aos direitos, liberdades e garantias, ou a direitos de natureza análoga, o seu objecto é a conservação do ambiente e consiste na pretensão de cada pessoa a não ter afectado o meio natural em que vive, pretendendo, para tanto, os necessários meios de garantia. Contudo, enquanto direito económico, social e cultural, o direito ao ambiente é um direito a prestações do Estado e da sociedade (art.66º/1 CRP), como por exemplo o direito dos trabalhadores à higiene no trabalho (art.59º/1 c) CRP). Assim, os direitos atinentes ao ambiente ficam sujeitos ao regime destas duas classes de direitos fundamentais, sendo que só os primeiros têm aplicação imediata (arts. 17º e 18º/1 CRP), devendo ser compaginados com os restantes direitos fundamentais.

Alguma doutrina defende, neste contexto, o simbolismo desta protecção, na medida em que o direito ao ambiente traduzir-se-á num outro direito de carácter pessoal ou patrimonial; logo, a tutela ambiental, a acrescentar algo ao quadro da protecção dos direitos pessoais ou patrimoniais, tem que incidir exclusivamente sobre a preservação e promoção da qualidade dos bens ambientais naturais.
Num segundo plano, este simbolismo revela-se na dependência em que o Direito do Ambiente se encontra do bloco de legalidade comunitária, ressalvada a Lei de Bases do Ambiente, expressão da soberania formal do Parlamento sobre a matéria art. 165º/1 g) CRP).

Apesar da doutrina divergir quanto à qualificação deste direito como subjectivo fundamental, é de notar que a melhor posição é aquele que afirma existir tanto uma vertente objectiva como subjectiva, sempre que exista, quanto a esta última, uma protecção jurídica substantiva, sendo assim um direito subjectivo público, já que existe uma pretensão individualizável dos cidadãos quanto a este bem jurídico.
Para concluir, refere se a importância da criação de um sentimento de responsabilização colectiva pela qualidade dos bens naturais, que em muito contribuiria para um aumento dos níveis de efectividade da legislação ambiental.

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