sábado, 21 de maio de 2011

Tutela do Ambiente através Direito Penal

A revisão do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/95, de 23 de Setembro, constitui uma oportunidade privilegiada para, no tocante à parte especial, se reverem os comportamentos que devem ser penalmente consagrados. Para deixarem de o ser ou passarem a ter tal dimensão. Muito embora o Código revisto apresente um número apreciável de artigos a menos, tal ficou a dever-se basicamente a novas formas de articulação dirigidas a evitar a "prolixidade" que caracterizava "a construção de tipos afins". E a lei de autorização da revisão exemplificava a tal propósito com os crimes contra o património, de perigo comum ou contra o Estado.
Mas pelo contrário, na referida lei de autorização previa-se a introdução de novos tipos de crime, "face à revelação de novos bens jurídicos, ou de novas modalidades de agressão ou de perigo, ou à necessidade de respeitar compromissos internacionais assumidos ou em vias de o serem".
No elenco das novas infracções a introduzir mencionaram-se as de "danos contra a conservação da natureza" e a de "poluição", que figurarão contempladas respectivamente nos artigos 278.º e 279.º do diploma.
Os crimes contra o ambiente, são ilícitos penais novos. E não tanto porque tenham recebido uma formulação dogmática diferente, mas porque se elegeu um bem jurídico novo. Daí que, numa época em que ressoam ainda os ecos da descriminalização como palavra chave da polícia criminal, nos tenhamos que interrogar sobre o porquê desta opção legislativa.
E já que criar novos crimes na área do ambiente se revelou necessário e possivelmente útil, outra questão aflora, que é como conceber esses crimes contra o ambiente? Mais concretamente, numa perspectiva de política criminal, de que modo é que essas infracções se relacionarão com outras ordens sancionatórias de carácter punitivo?
E como caracterizar o novo bem jurídico eleito? Finalmente, como estruturar os preceitos que o protegem? Criando crimes de perigo concreto, de dano, ou nem uma coisa nem outra?
Se observarmos o nosso direito anterior à revisão do Código ou virmos o que se passa com alguns códigos estrangeiros, obviamente que se nos deparam inúmeras disposições em que se protege indirectamente o ambiente. Referir-se-á entre nós todo o conjunto dos crimes de perigo comum previstos antes no artigo 153.º e seguintes do CP, ou as infracções previstas na Lei 19/86 de 19 de Julho, relativas a incêndios florestais, ou do âmbito circunscrito da caça ou pesca. O que porém existe de novidade nos crimes dos artigos 278.º e 279.º do CP é a eleição e protecção do bem jurídico ambiente ou a qualidade do ambiente enquanto tal.
É sabido que as grandes opções de política criminal são opções de política, com tudo o que isso envolve, e estão ligadas pois, directamente, aos sistemas de Governo das Nações. A traço muito grosso, dir-se-á que uma política criminal que preserve acima de tudo a coesão da comunidade e os seus valores, colocando em segundo plano a pessoa enquanto indivíduo, deposita uma confiança grande na repressão, e aposta pois na criminalização dos comportamentos, ou até das personalidades nocivas, bem como no fim retributivo da pena.
No extremo oposto, o modelo "liberal" adopta uma perspectiva humanista com a valorização autónoma e primária do indivíduo como tal, reserva para a pena fins utilitários, e propõe mesmo um recuo do sistema penal repressivo, arvorado em última ratio de qualquer política social. Este modelo "liberal" é o que melhor se casa com o "Estado Democrático e Social de Direito", de que Portugal se reclama.
E assim é possível contar hoje com um novo paradigma do direito penal que melhor se coaduna com o Estado de Direito, para além da ameaça, aplicação e execução da pena não serem pré-ordenadas à compensação da culpa e esta desempenhar o papel de limite inultrapassável da dita pena, o princípio de intervenção mínima, realiza-se através do duplo critério da necessidade e da eficácia ou adequação da intervenção do direito penal. Os interesses em jogo na convivência social, se fundamentais, não admitem comportamentos que os violem. A intolerabilidade de tais comportamentos aponta para a sua criminalização. No entanto, a disponibilidade de alternativas idóneas à superação dos conflitos afastará a intervenção do direito penal.
Acresce que, mesmo estando em causa a protecção de bens jurídicos fundamentais, se não for clara a existência de outros instrumentos jurídicos para os proteger convenientemente, ainda aí o direito criminal deverá abster-se de intervir, se tal intervenção não for profícua. E não o será, sempre que com a criminalização se obtenham resultado muito escassos, ou à custa de sacrifícios sociais desmedidos.
Dentro dos limites relativamente largos, fica um espaço reservado à dinâmica da criminalização e da descentralização através da qual, o legislador vai, afinal, exprimir os anseios de uma certa fase do processo histórico. Na direcção que segue, esse legislador subordina-se aos concretos dados da estrutura social vigente, reflecte opções que poderão ser exclusivamente político-ideológicas, sofre a pressão de grupos sociais zelosos na defesa dos seus interesses e faz-se eco das representações axiológicas vigentes no momento.
Nas últimas décadas o discurso da descriminalização foi o dominante, apontando-se áreas privilegiadas para que aquela transformação se operasse. Será o caso dos crimes contra a ordem e tranquilidade públicas, dos comportamentos sexuais, ou da delinquência juvenil, reservando-se para o consumo de estupefacientes o confronto mais animado de posições. Concomitantemente, operava-se a substituição das contravenções pelo ilícito de mera ordenação social.
Em contrapartida, não deixou de se apresentar o justificativo pertinente para o processo paralelo de neocriminalização, o qual iria ter lugar subordinado a três ideias-força:
De uma banda a acelerada internacionalização dos problemas criminais e o ênfase dado aos direitos humanos trouxeram à luz da ribalta de novo, o direito internacional penal.
O progresso tecnológico originou por seu turno formas sofisticadas e inéditas de atentar contra interesses tradicionais, como sejam a liberdade, a intimidade, o bem estar e a saúde individuais. Houve pois, uma neocriminalização imposta pelo aparecimento de novos meios de cometimento de crimes.
Finalmente, o fenómeno da "democratização do crime" a que não são estranhos, à la longue, os efeitos de teoria como a do "labeling approach". A criminalidade "white collar" é um facto cada vez mais preocupante e parece arredada de vez, ao menos ao nível do discurso, a ideia de que o crime respeita só às camadas mais desfavorecidas ou marginalizadas da sociedade. Fenómenos como o da corrupção em larga escala e da criminalidade económica, de empresa, organizada ou não, exigiram a criação de tipos de crime diferentes.
Neste contexto, uma neo-criminalização na área da protecção do ambiente poderá inscrever-se na necessidade de responder aos desafios do desenvolvimento tecnológico e da criminalidade "white collar".

Ora, os atentados mais gravosos ao ambiente estão hoje qualificados como crimes no Código Penal como referi. Os chamados crimes ecológicos ou ambientais são o crime de danos contra a natureza e o crime de poluição. Sucede porém que a qualificação das condutas aí descritas como criminosas suscita vários problemas, de cuja boa resolução vai depender a eficácia da intervenção do direito penal na tutela do ambiente.
Esclarecer que “Neocriminalização” é a qualificação como crime de uma conduta até então vista como não criminosa, e crime é uma conduta descrita num tipo legal de crime da Parte Especial do Código Penal por ser desvaliosa do ponto de vista do bem jurídico a proteger.
Esta tutela autónoma do ambiente ficou a dever-se à progressiva tomada de consciência pela comunidade da gravidade da degradação ambiental. O facto decisivo de a tutela penal ser possibilitada pela existência de um “modelo constitucional de estado de Direito Ambiental”, tendo o legislador configurado o direito do ambiente como um direito fundamental autónomo e também como direito social e económico que reclama prestações positivas das autoridades.
O bem jurídico ambiente relevante para o direito penal é concebido de forma restritiva por ter como objectivos de protecção os componentes ambientais naturais, a água, o solo, o ar, o som, a fauna, e a flora e as condições ambientais de desenvolvimento destas espécies.
A legitimidade da intervenção penal justifica-se por a Constituição da República Portuguesa ser a lei suprema de um ordenamento jurídico.

A impossibilidade de responsabilização criminal das pessoas colectivas.

Artigo 11º do Código Penal

Salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis da responsabilidade criminal - carácter pessoal da responsabilidade.
Raramente o prejuízo ambiental resulta da conduta isolada de um único agente poluidor, o mais comum será a contribuição de múltiplos agentes para a produção do resultado desvalioso, o que coloca a questão de saber quem responsabilizar e relativamente a que factos.
É precisamente a existência deste dano ambiental acumulado, em que é difícil determinar a responsabilidade relativa de cada um dos intervenientes, até porque a sua própria conduta poderia ser mais ou menos inócua se não fosse conjugada com a conduta desconhecida de outrem, que em primeira linha retira eficácia aos crimes de dano, de perigo concreto e de perigo abstracto-concreto na protecção do ambiente.

1. Sendo o crime de dano, verifica-se a exigência indispensável de provar que a lesão ambiental foi causada por uma determinada conduta.
2. Configurado o crime como de perigo concreto, há que provar que aquela conduta criou um perigo efectivo para o ambiente.
3. Concebido o crime como de perigo abstracto-concreto, há que provar que uma dada conduta é em si mesma apta a produzir o perigo.


A possibilidade de qualquer cidadão e das associações de defesa do ambiente se constituírem assistentes no processo penal relativamente a crimes ecológicos.

Artigo 68º do Código de Processo Penal

1. Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) (…)

Artigo 69º do Código de Processo Penal

1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, sala as excepções da lei:
2. Compete em especial aos assistentes:
a) (…)

O exercício da acção popular, assume uma importante dimensão penal ao reconhecer expressamente aos titulares do direito de acção popular a possibilidade de se constituírem assistentes no processo penal.
Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos art. 68º, 69º e 70º do Código de Processo Penal.

O crime de danos contra a natureza

Artigo 278º do Código Penal

1. Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo, de forma grave, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.

O crime de danos contra a natureza é um crime ecológico autónomo porque o bem jurídico protegido é o ambiente em si mesmo. Objectos de tutela da norma são a fauna, a flora, o habitat natural e os recursos do subsolo. O crime de danos contra a natureza surge pois como um crime de desobediência qualificada pela ocorrência de um dano ambiental.

O crime de poluição

Artigo 279º do Código Penal

1. Quem, em medida inadmissível:

a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;

b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações;

c) Provocar poluição sonora mediante de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza

É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 . (…)

Tal como o crime de danos contra a natureza, o crime de poluição é um crime ecológico puro porque tem como objectos autónomos de protecção a água, o solo, o ar ou o domínio do som.


Acessoriedade do direito penal face ao direito administrativo

Uma última consequência do facto de os crimes ecológicos constituírem crimes de desobediência traduz-se na dependência destas incriminações penais perante o direito administrativo.

A eficácia do direito penal na protecção do ambiente

Tendo em conta a função que ao direito penal cabe desempenhar, a sua intervenção só é legítima se for eficaz na protecção do bem jurídico.

O Direito de Mera Ordenação Social como Direito Administrativo de Carácter Sancionatório

O direito de mera ordenação social não é nem pretende ser direito penal, antes configura-se como direito administrativo de carácter sancionatório.
De forma resumida e esquemática diremos então que o surgimento do direito das contra-ordenações é expressão de três objectivos fundamentais:

1. Retirar dos quadros do direito penal aquelas infracções que não possuem relevância ética.
2. Guardar o conteúdo ético que vive das sanções penais (…)
3. Permitir o aparecimento de sanções diversas das sanções penais e atribuir aos agentes administrativos a faculdade de aplicar aquelas sanções.

Pode concluir-se que o pretendido com a criação do direito das contra-ordenações é uma total autonomização do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal. O princípio da culpa é de decorrência da consagração constitucional da eminente dignidade da pessoa humana e significa, no direito penal, que não há pena sem culpa e que a medida da pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa (nº 2 do artigo 40º do Código Penal). Entende-se a culpa como um juízo autónomo de censura ético-jurídica por alguém ter expresso na prática de um ilícito típico a sua atitude interna contrária ou descuidada face ao direito e, portanto desvaliosa.
No direito das contra-ordenações, pelo contrário, a culpa deve ser objecto de uma diferente compreensão, sendo entendida como, mera imputação do facto à responsabilidade social do seu auto.

O ambiente uma das áreas destinatárias por excelência do direito de mera ordenação social. Boa parte das infracções ao ambiente tem a ver com a violação de normas preventivas em que não estão em causa valores indispensáveis para a subsistência da vida na comunidade, mas antes a perturbação da ordem social que, na visão do Estado, proporciona um maior bem-estar às pessoas. Daí a clara preferência para o tratamento dos atentados e das infracções ao ambiente através do direito de mera ordenação social, preferência esta plasmada na Lei de Bases do Ambiente, quando estabelece que a sanção regra para a punição das infracções à legislação ambiental é a coima.

Parecem convergir no direito do ambiente dois vectores de sinal contrário:

1. Por um lado, existe a tutela penal, que corresponde a uma neocrimiminalização,
2. Por outro lado, temos a tutela ambiental a cargo do direito de mera ordenação social, que assenta numa ideia de descriminalização.




David Cardoso – 17254 – sub 8

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