sábado, 21 de maio de 2011

A técnica da valoração do silêncio da APA

A licença ambiental é um instrumento de prevenção, que se concretiza “num princípio de proibição sob reserva de permissão”[1]. Sendo negado ao particular a possibilidade de emitir poluição proveniente da exploração de determinadas actividades industriais para o ar, água e solo, sem se munir previamente de um acto administrativo conformador dos limites desse desgaste.


Por outro lado, a licença ambiental, é expressão de uma dimensão positiva do princípio da correcção na fonte, vinculando o operador a evitar ou minimizar os efeitos nocivos das emissões poluentes que produz.


Uma das virtudes apontadas ao DL194/00 era a recusa de licenciamentos tácitos. Este regime apresentava-se coerente com o princípio da prevenção e da decisão.


Não obstante todas as críticas formuladas ao surgimento de um regime de deferimento este surgiu, tendo sido introduzido no RLA pelo art.17.º[2].


Assim sendo, a introdução do deferimento tácito como regra representa uma violação do princípio constitucional da prevenção e das obrigações decorrentes quer dos tratados institutivos, quer das directivas comunitárias em matéria de licenciamento ambiental, chegando mesmo, a confrontar a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE.


O procedimento conducente ao deferimento/indeferimento da licença ambiental inicia-se com um pedido do particular à entidade coordenadora (art.11.º, n.º1 do RLA), enunciando os elementos constantes deste artigo.


De seguida a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) no prazo de 15 dias verifica se o pedido foi instituído com todos os elementos exigidos (art. 13.º/1 RLA). Durantes este período a APA pode convocar o operador para que este participe em conferência instrutória, de modo a uma melhor apreciação do pedido por parte da Administração (art. 13.º/3). Se o pedido não preencher os requisitos legais, a APA pode pedir ao operador esclarecimentos adicionais ou indeferir liminarmente o pedido, se não for possível corrigi-lo ou juntar-lhe os elementos em falta.


Posteriormente, a APA avalia tecnicamente o pedido de LA, decorre ainda a fase de participação pública e segue-se, em princípio, a decisão final da APA nos prazos estipulados no art.16.º, n.º1, 2 e 3 do RLA.


Decorridos estes prazos, não tendo a APA proferido decisão e não se verificando nenhuma das causas de indeferimento enunciadas nas alíneas a) a e) do n.º6 do art.16.º, considera-se que a pretensão do operador foi tacitamente deferida (art.17.º, n.º1 do RLA), sendo remetida ao operador a comunicação de que o prazo decorreu sem que sobreviesse qualquer decisão (art.17.º, n.º2 do RLA). A entidade coordenadora a APA, remete o pedido de licença ambiental e os resultados da participação pública (quando tenha ocorrido), e confia na competência desta para fazer cumprir os valores impostos de emissões e a utilização das MTD’s (art.17.º, n.º3).


Segundo Carla Amado Gomes[3] e Pedro delgado alves[4] esta é uma solução bastante incorrecta, levantando alguns problemas que passo a enunciar:


1. Sendo a finalidade da licença ambiental garantir a intervenção obrigatória e vinculativa de uma autoridade administrativa previamente ao início de exploração de uma instalação poluente, será permitir que a decisão possa ser tomada sem que a entidade competente se tenha pronunciado. Este tipo de condutas leva a uma limitação da capacidade de prevenir e controlar as actividades poluentes pela Administração.


2. O regime do deferimento tácito leva a uma violação do princípio constitucional da prevenção (art.66.º, n.º2 da alínea a)), uma vez que, os podres públicos abicam de uma intervenção que a Constituição lhes impôs. A LBA por sua vez seria, também, violada, atendendo ao art.27.º, n.º1, alínea h) e art.33.º, n.º1, que consagra o licenciamento prévio de todas as actividades poluidoras. Ainda, no plano do Direito Comunitário, viola a Directiva 2008/1/CE- arts.4.º, 8.º, e 9.º-, que estipula a obrigatoriedade de licenciamento de todas as actividades. Face ao exposto é clara a “obrigatoriedade” de uma decisão expressa que determine as condições em que a exploração da instalação poderá vir a ter lugar.


3. O legislador, ao contrário do regime do RLA, “vacinou os procedimentos de licenciamento ambiental com impactos transfronteiriços contra este veneno[5]” (art.23.º, n.º4 do RLA). Esta solução é discriminatória, distinguindo entre procedimentos transnacionais, em que a ponderação fica assegurada, e procedimentos nacionais, em que a ponderação é negligente. Sendo a “poluição” um conceito que não conhece fronteiras não fará sentido atender a este tipo de descriminação, se vigora este regime para as situações transfronteiriças porque não vigorar também para as situações nacionais?


4. O Operador que receba uma licença silente será devolvido o valor da taxa paga para apreciação do pedido, por inteiro (art.30.º, n.4 do RLA). Será esta opção, uma “confissão de culpa”, como propõe Carla amado gomes[6]? Somos tentados a concordar, pois a APA visa apenas retratar-se da não emissão da decisão, compensando desta forma o particular.


5. A lei exige que a APA emita certidão comprovativa do deferimento (art.17.º, n.º2 do RLA), pois, sem esta, o particular não poderá prosseguir o procedimento de licenciamento, nomeadamente obter a licença de exploração (art.9.º, n.º2 do RLA). Para contornar a omissão de emissão de certidão o legislador indicou como via de ultrapassagem do problema: a intimação para passagem de certidão, em processo sumário regulado nos arts.104.º e ss. do CPTA (por remissão do art.22.º, n.º2 do RLA). Contudo, não indicou uma via de certificação do indeferimento implícito que o ocorrerá em caso de verificação de algumas das situações referidas no art-16.º, n.º6, líneas a) a e).


6. Por fim, a falta de ponderação deste procedimento levam-nos a concluir que há determinadas ponderações que ficam ignoradas com esta decisão tácita, pois, nos termos dos arts.18.º, n.º3, 4, 5 e 6 do RLA, a APA tem que conformar a relação jurídica autorizativa com um conjunto de circunstâncias técnicas, ambientais, geográficas, que se apresentam alheias ao operador.


O art.17.º, n.1 do RLA tentou atenuar os impactos nefastos da solução do deferimento tácito, proibindo a formação de acto silente em casos de verificação de alguns dos fundamentos de indeferimento constantes das alíneas a) a e)[7] do art.16.º, n.º6.


Assim sendo, não se torna apenas necessário o decurso do prazo, é também requisito a não verificação de nenhum das causas de indeferimento previstas nas alíneas a) a e) do art.º16/6.


Segundo Pedro delgado alves[8] ao exigir-se a presença de elementos adicionais está a entrar-se em contradição com a própria natureza e função da figura do deferimento tácito. Se a realidade em que nos movemos é a do silêncio da Administração, como podemos aferir com alguma certeza a verificação de todos os requisitos deste deferimento tácito? Parece ser difícil…


Face a todos estes condicionalismos deparamo-nos com um deferimento tácito complexo, dependente do preenchimento de requisitos substantivos que ninguém irá apreciar. Quando chamada a interferir a Administração praticará um acto, que será de deferimento ou indeferimento, mas não se ficará pela mera pronúncia quanto à qualificação a dar a uma situação jurídica potencialmente geradora de um deferimento tácito.


Neste ponto será prudente chamar á colação o “nosso” regime do Contencioso Administrativo, pois, invocando o particular a constituição de uma situação activa na sua esfera jurídica pelo decurso de tempo e pela ausência de qualquer impedimento, a Administração que deixou decorrer o prazo para decidir, passa a dispor de uma forma de atacar a sua posição invocando a presença de um elemento impeditivo da formação de deferimento tácito. Esta solução será muito mais prejudicial para o particular que o próprio indeferimento da decisão.


Colocar-se-á ainda outra questão: tendo alegado a administração que não há lugar à produção de deferimento, poderá o particular formular um pedido de condenação da Administração à prática de acto devido (art.66.º do CPTA)? Parece que fará mais sentido o particular intentar acção de reconhecimento da existência da sua situação jurídica em sede de acção comum, pois, a condenação à prática de acto devido pressupõe a existência de um indeferimento, tendo o particular que o demonstrar.


Em suma, as solução da técnica da valoração do silencia da APA é potencialmente lesiva de valores, como sejam, a prevenção de riscos para a saúde e para o ambiente que o regime do RLA pretende proteger.


O facto de o legislador tentar atenuar os efeitos com a remissão para o art.16.º, n.º6, alínea a) a e), apenas contribui para uma complicação adicional, pois, “além de um acto de deferimento tácito, o RLA criou um acto de indeferimento implícito”[9].


Não tendo o legislador vedado a formação de deferimento tácito em caso de pedido desconforme com o art.11.º do RLA, a licença ambiental é um “cheque em branco”, uma vez que as regulamentações aplicáveis a determinada instalação, deviam ter que ser adaptadas em função das condições do art.18.º, n.º3 e 5 do RLA, através de uma ponderação que não se verificou.



Estela Guerra, n.º 17269, Subturma 5






[1]Carla Amado Gomes, O procedimento de licenciamento ambiental revisitado, in Actualidade Jurídica Ambiental, 30 de Julho de 2010, p. 1, (disponível em http://www.actualidadjuridicaambiental.com/wp-content/uploads/2010/07/AMADOGOMES300720101.pdf).



[2] Contudo, o art.2.º alínea i) do RLA continua a definir a licença ambiental como uma “decisão escrita” que deverá corresponder, hoje, à certidão a que se reporta o n.º2 do art.17.º



[3] Carla Amado Gomes, O Procedimento…, op., cit., p.17.



[4] Pedro Delgado Alves, O novo regime jurídico do licenciamento ambiental, in O que há de novo no Direito do Ambiente? – Jornadas sobre os novos diplomas de Direito Ambiental, AAFDL, 2008, p. 214-216.



[5] Carla Amado Gomes, O Procedimento…, op., cit., p.18.



[6] Carla Amado Gomes, O Procedimento…, op., cit., p.19.



[7] Em relação às alíneas b) e c) o problema não se coloca, pois trata-se apenas de constatar da existência ou não de uma DIA desfavorável ou de uma não aprovação do relatório de segurança, já quanto ás alíneas d) e e) o problema é diferente, uma vez que não se basta com a constatação da existência ou não de um determinado acto administrativo, pressupondo a interpretação de normas jurídicas, e no caso da alínea e),está em causa a formulação de juízos enquadráveis no âmbito da margem de livre decisão da Administração; por fim a alínea f), não levante qualquer problema, uma vez que apresenta os casos, em que a margem de livre decisão administrativa é superior.



[8] Pedro Delgado Alves, O novo regime…, op., cit.,. p. 218.



[9] Carla Amado Gomes: Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito Administrativo Especial, V. I, Coord. PAULO OTERO e PEDRO GONÇALVES, Almedina, Coimbra, 2009, p.222.

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