sábado, 7 de maio de 2011

Jurisdição administrativa relativamente aos bens ambientais

   O tema escolhido situa-se entre o Direito Administrativo e o Direito do Ambiente. A questão que levou a esta reflexão foi a “creeping jurisdiction” que é um fenómeno que tem vindo a desenvolver-se no âmbito do Direito do Mar, que se traduz na reivindicação unilateral de poderes de jurisdição dos Estados para além da sua zona económica exclusiva, isto é no alto mar, invocando quase sempre um interesse especial na captura de certas espécies de peixes (operam ao abrigo do Princípio da Liberdade de pesca no alto mar). Este é um fenómeno que tem efeitos devastadores ao nível da sobreexploração de determinadas espécies.
   Marques Guedes define a “creeping jurisdiction” como “um lento resvalar para a sujeição à jurisdição nacional” do alto mar, espaço que é naturalmente colocado sob a égide do direito Internacional Público.
O art. 4º/1 do ETAF pode ser visto, tal como a situação explanada, como um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa tendo em conta o anterior art. 4º e igualmente o art. 212º/3 CRP que estabelece a jurisdição administrativa em torno do conceito de relação jurídica administrativa.
   Actualmente os arts. mencionados fazem dos tribunais administrativos mais do que os “tribunais comuns em matéria administrativa”.
  
Cabe então, em primeira análise, averiguar se a Lei Fundamental tem ainda algum papel a desempenhar na delimitação máxima do âmbito da jusrisdição administrativa.
   Carla Amado Gomes demonstra este alargamento do âmbito de jurisdição administrativa mediante o confronto entre o art. 4º/1 do velho ETAF e o novo art. 4º/1.
O antigo art.4º/1 procedia a uma delimitação da jurisdição administrativa pela negativa enquanto que o novo art.4º/1 faz uma delimitação positiva e deixa para o nº 2 e 3 uma delimitação negativa. Assim sendo podemos concluir que há cláusulas do antigo 4º/1 que transitaram para o novo art. 4º mas agora para os seus nºs 2 e 3. Assim, e seguindo a exposição da professora Carla Amado Gomes, as alíneas a),1º parte, e b), 1º parte do antigo art. 4º/1 reuniram-se na alínea a) do nº 2 do novo art. 4º; a alínea d) do antigo art. 4º/1 passou a ser a alínea c) do nº 2 do novo art. 4º do ETAF.
A apreciação da validade de actos inseridos em processos de inquérito e instrução criminal, acção penal e execução de decisões de carácter penal continuam a estar excluídas do âmbito da jurisdição administrativa. As clásulas restritivas desapareceram do lado negativo para reaparecerem do lado positivo embora, claro, com alterações.
Os Tribunais Administrativos passam a ser competentes para conhecer dos actos em matéria administrativa dos tribunais judiciais, bem como de quaisquer órgãos pertencentes ou não à Administração Pública, com excepção dos Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura e deste mesmo órgão – art. 4º/1 c), 3 b) e c).
  
Quanto à alínea f) a questão torna-se mais complexa. Os tribunais administrativos têm competência para apreciar questões de direito privado – art. 4º/ 1 b), e), g) e h) – quanto a esta alínea cabe averiguar se a utilização do direito privado surge a título instrumental relativamente à prossecução da função administrativa (sendo aí justificada a intervenção destes tribunais) ou se, pelo contrário, o direito privado desempenha um papel principal na regulação da situação jurídica devendo assim a questão ser apreciada junto dos tribunais judiciais (jurisdição comum). No caso dos contratos a dependência com procedimentos e vinculações de direito público pode tornar muito ténue esta distrinça. Já no âmbito da responsabilidade civil extracontratual  parece mais clara a possibilidade de separação entre actos pessoais e actos funcionais caíndo sob a alçada dos tribunais administrativos apenas estes últimos.
Quanto à aline e) do antigo art. 4º/1 ETAF, esta não encontra correspondência no novo art.. Em relação a esta alínea hoje aplica-se o art. 1º/1 ETAF que consagra o critério da pertença à jurisdição administrativa da competência para apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. A qualificação de bens como de domínio público é de pleno uma competência materialmente administrativa.

   Como conclusão há a dizer que que se nota um sensível aumento do âmbito da jurisdição administrativa, o qual deve ser visto e interpretado com cautela.

   Carla Amado Gomes considera relevantes a inclusão das alíneas a), j), l) e n) do nº1 do art. 4º, bem como a alínea a) do nº 3.

   A alínea a) faz da justiça administrativa a guardiã dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídico-públicas. Claro está que entre autênticos privados, as violações de direitos fundamentais resolver-se-ão junto dos tribunais comuns por força da desqualificação de tais situações como relações jurídicas administrativas, condição que é essencial no acesso à jurisdição administrativa.

   A alínea j) reflecte o reconhecimento de múltiplos centros autónomos de decisão no seio da mesma pessoa colectiva pública e expressa a necessidade de encaminhar o acesso à justiça promovido por essas entidades quando estejam em causa a defesa dos interesses incluídos nas suas atribuições.

   Quanto à alínea l) esta vem confirmar a jurisdição dos tribunais administrativos sobre os litígios que envolvam a protecção em sentido amplo de bens de fruição colectiva, tais como “saúde pública”, “ambiente”, “urbanismo”, “ordenamento do território”,...

    A alínea n) consagra a regulação de um processo executivo próprio no CPTA – arts. 157º e seguintes – eliminando assim uma restrição injustificada do âmbito da jurisdição administrativa, tendo assim o apoio num processo plenamente regulado pela lei processual administrativa.

   A alínea a) do nº 3 do art. 4º limita os efeitos da alínea g) no que se prende com a responsabilidade emergente do exercício da função jurisdicional. Assim num Direito especializado como é o Administrativo, faz sentido que os erros de aplicação sejam avaliados pelos tribunais que directamente lidam com esse direito – Princípio da Especialização – impedindo assim de outro modo que os tribunais administrativos se pronunciem sobre erros judiciciários de outras ordens de jurisdição uma vez que aí se aplica direito comum.

   O conceito de relação jurídica administrativa é um conceito vazio. A integração deste conceito tem sido feita através de diversos critérios – o orgânico, o do interesse, o estatutário e o da conexão funcional. O legislador ordinário terá que recorrer a alguns deles para dar concretização ao dispositivo constitucional, uma vez que este impõe a jurisdição administrativa como uma jurisidição especializada face da jurisdição comum.
Questão que ainda hoje se revela complexa é a de traçar a linha de separação entre a jurisdição que se ocupa primordialmente de matérias relativas ao direito público e a jurisdição que se ocupa de questões reguladas pelo direito privado e definir o critério que permita identificar o fim predominante de uma dada actividade; se privado, da jurisdição comum; se público, da jurisdição administrativa.

   O significado da noção de relação jurídica administrativa, essencial para justificar a existência de uma jurisdição especializada, tem de ser pressuposto na leitura das alíneas do nº1 do art. 4º do ETAF, sob pena de atentar contra a disposição constitucional e contra as razões de criação de uma jurisdição administrativa (dimensão mínima da reserva de jurisdição administrativa). Relativamente à apreciação de matérias que excedam o domínio da função administrativa - por exemplo o julgamento de questões de responsabilidade pelo exercício das funções legislativa e jurisdicional – o problema é bem mais complexo (dimensão máxima da reserva de jurisdição administrativa). A interpretação do art. 212º/3 CRP deve ser sujeita a uma redução teleológica tendo sempre em conta o porquê do seu estabelecimento: traçar a divisão entre o que pertence à jurisdição comum e o que pertence à jurisdição administrativa. Esta interpretação admite a possibilidade de entrega à jurisdição administrativa da competência para apreciar todas as questões jurídico-públicas não confiadas expressamente a outra jurisdição que tenha por atribuição especial o controlo da validade de actos de outras funções do Estado.

   Jorge Miranda: “Os tribunais administrativos hão-de ser, por regra, os tribunais de contencioso administrativo, mas sem se vedarem derrogações em nome de outros interesses ou valores constitucionalmente atendíveis, assim como em contrapartida, poderão, porventura, ser-lhes adicionadas competências vizinhas ou conexas”.

   No art. 221º CRP os tribunais administrativos surgem como a jurisdição comum em matérias de direito público que não estejam expressamente atribuídas a nenhuma outra jurisdição. Assim a jurisdição administrativa apresenta-se como especial face à comum mas como geral face às outras jurisdições que se ocupem de matérias jurídico-públicas.
Excepcional deverá considerar-se a atribuição da competência para julgar litígios emergentes de relações jurídico-públicas à jurisdição comum. Contudo não é este desvio e devidamente fundamentado da jurisdição da matéria administrativa para os tribunais comuns que constitui ameaça à densidade da fórmula da relação jurídica administrativa. Já a extensão da jurisdição administrativa a litígios de carácter não administrativo mas jurídico-público põe em causa tal noção contudo não fica intolerávelmente afectada uma vez que se trata de um alargamento numa lógica que se depreende da articulação com o art. 209º/1 CRP. Verdadeira ameaça ao conceito de relação jurídica administrativa é já a atribuição aos tribunais administrativos de competência de apreciação e julgamento de questões essencialmente privadas (não traduzem o exercício de funções materialmente administrativas nem detêm qualquer conexão com matérias jurídico-públicas).

Âmbito de protecção do art. 212º/3 CRP
  
   O que é preocupante no processo de alargamento do âmbito da jurisdição administrativa é a extensão dos poderes de julgamento dos tribunais administrativos a litígios que mais do que envolverem a aplicação do direito privado, constituem a expressão de relações jurídico-privadas. Ao apontar-se o critério da relação jurídica administrativa como critério delimitador do âmbito de reserva de atribuições jurisdicionais dos tribunais administrativos, o legislador constitucional quis abranger no controlo destes últimos toda a actividade em que se traduz o desempenho de uma função do Estado: a função administrativa. Desta feita, detectam-se nalgumas alíneas do art. 4º/1 inconformidades que podem levantar dúvidas, por exemplo aquelas em que os tribunais administrativos para além de apreciarem questões de direito privado são aparentemente convocadas para avaliar a legalidade de uma actuação cujo móbil não é a realização de um fim público – responsabilidade civil extracontratual de entidades públicas incluídas no âmbito da jurisdição administrativa pelas alíneas g) e h) do nº1 do art.4º do ETAF.
Há razões práticas que justificam a exclusão de certas relações jurídicas administrativas da sindicância dos tribunais administrativos para as confiar ao poder de apreciação dos tribunais comuns (exemplo das coimas), ou seja, nem todas as relações jurídicas administrativas são apreciadas pelos tribunais administrativos.

   Assim, e para concluir, o respeito pelo dispositivo constitucional – art. 212º/3 – que elege o critério da relação jurídica administrativa como linha de fronteira das duas ordens jurisdicionais a que alude o art. 209º/1 CRP, tem um significado que reside na atracção para a jurisdição administrativa do julgamento de questões que independentemente do ramo de direito cuja regulação lhes esteja subjacente, envolvem acções ou omissões de tonalidade pública, ou seja, traduzem a prossecução de objectivos de interesse público, constitucional e/ou legalmente enunciados e não consubstanciam formas típicas do exercício de outra função do Estado que não a administrativa.

Sentido e alcance da alínea l) do nº1 do art. 4º do ETAF relativamente aos bens ambientais

   Com a substituição do texto do art. 45º da LBA aceitou-se que a protecção do ambiente  também fosse accionável pelas vias jurisdicionais públicas remetendo para a distinção ainda vigente entre actividade de gestão pública e gestão privada.
   A alínea b) do nº1 do art. 4º do ETAF bastaria para colocar sob a alçada dos tribunais administrativos um vasto conjunto de situações que, anteriormente, estavam sujeitas à captação pela jurisdição comum.
   A par da alínea b) também a alínea a) (nos casos de lesão do direito ao ambiente por acções ou omissões materiais administrativas ) e g), h) e i) (dependendo do sujeito a quem é imputada a responsabilidade) constituiriam fontes de captação de litígios com conotação ambiental. Importante é também referir que hoje a cumulação de pedidos é perfeitamente possível ao abrigo do art. 4º do CPTA, mais um factor que concorre para que a apreciação da validade da autorização deva ser feita pelos tribunais administrativos, na medida em que, pelo menos sempre que houver danos directamente decorrentes do exercício da actividade autorizada, sempre caberá apurar se estes devem ser imputados ao lesante, à Administração ou a ambos.
   Em regra e salvo demonstração da natureza puramente privada do litígio, a existência de um acto autorizativo puxa a resolução global do problema para a jurisdição administrativa, ainda que a questão principal, tal como é delineada na petição inicial, não configure, pelo menos directamente, uma relação jurídica administrativa. É um fenómeno legítimo à luz do art. 20º CRP porque potencia a celeridade e efectividade de tutela jurisdicional do autor  sem prejudicar os direitos de defesa da contraparte, contribuindo também, de forma objectiva, para a melhor administração da justiça.
   Assim a alínea l) vem complementar a tutela ambiental já providenciada pela alínea b). O que esta acrescenta à protecção jurisdicional administrativa do ambiente é a possibilidade de apreciação das questões que envolvam a “prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria de ambiente quando cometidas por entidades públicas e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional”, sempre que desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa, seja ela legalmente exigível ou não.

   O ambiente é um bem público cuja protecção constitui um objectivo primeiramente entregue às autoridades públicas não dispensando a colaboração dos privados, a quem cabe também o dever de o proteger.
   Até 1989 atutela jurisdicional do ambiente era mediatizada através de bens individuais, tais como a integridade física, a propriedade, a personalidade acopolados sob a fórmula do direito ao ambiente. Com a introdução de um nº3 no art. 52º CRP tornou-se claro que o legislador constitucional admitia o exercício da acção popular relativamente a bens de natureza colectiva, entre os quais o ambiente. Assim ao admitir-se a via da legitimidade popular para proporcionar a defesa dos valores ambientais, o legislador constitucional iniciou a construção dogmática de uma situação jurídica diversa. Ao admitir uma condição de acesso à justiça contextualizada a partir da integração comunitária do sujeito e justificada pela vontade de actuar em nome de valores supra-individuais, o legislador confirmou a existência de bens jurídicos de particular natureza, e cuja defesa seria a partir daí veiculada por mecanismos próprios. A legitimidade popular exclui a legitimidade singular.
   O art. 66º/1 1ª parte CRP fala num direito ao ambiente, contudo é uma disposição sem conteúdo jurídico. Um direito sem conteúdo não pode ser considerado um direito a não ser para efeitos de intervenção processual e mediatizado por autênticos direitos quando não existem outras vias alternativas de protecção do interesse subjacente. Esse interesse reconduz-se à preservação da integridade dos bens ambientais naturais, os únicos sob a égide do art. 66º/2 CRP. Este é um interesse público que só por formas de extensão da legitimidade singular pode ser, procedimental e processualmente, assegurado. Assim torna-se compreensível a atribuição à jurisdição administrativa de todas as iniciativas processuais populares  e públicas, ainda que a violação seja perpetrada por privados uma vez que o objecto que se pretende preservar é público, a lesão eventualmente produzida é pública e assim sucessivamente.
   É importante deixar claro que uma coisa é a defesa de um interesse individual através da legitimidade tradicional – a singular – o objecto do processo é configurado à medida da vantagem pessoal que se pretende obter com o prvimento da acção; outra coisa é a tutela de um interesse supra-individual através da legitimidade popular – o objecto do processo é configurado à medida do ganho para a colectividade resultante do provimento da acção. Uma acção promovida ao abrigo da legitimidade singular tem reflexos individuais directos e pode ter reflexos colectivos indirectos contudo defende-se uma posição individual; uma acção promovida ao abrigo da legitimidade popular tem efeitos colectivos imediatos  mas não tem necessariamente efeitos mediatos na esfera pessoal, defende-se um bem de interesse colectivo. Ao mesmo sujeito, tendo em conta o interesse que concretamente pretende prosseguir, é possível optar entre a legitimidade singular e a popular mas nunca pode, relativamente a um mesmo objecto, utilizar ambas as vias de legitimação.

   A reunião de todo o contencioso ambiental sob a alçada da jurisdição administrativa tem vários argumentos a seu favor:
- conjunto de litígios cujo objecto é público (protecção da integridade dos bens ambientais naturais);
- aplicação primacial de normas de direito público;
- a maior parte de litígios emergentes de relações jurídicas ambientais consolidadas através de actos autorizativos já pertencem à jurisdição administrativa – alíneas b) e l) do nº1 do art.4º;
- (...)

   É importante que se perceba que esta solução não serve para “entupir” a jurisdição administrativa com litígios de conotação puramente jurídico-privados, ao abrigo da camuflagem do “direito ao ambiente” uma vez que a iniciativa popular, que só pode sustentar motivações altruístas dirigidas à salvaguarda de um bem de interesse colectivo, não comporta esse risco, este advém sim do perpetuar da percepção distorcida que vê no ambiente um objecto de direitos individuais.

Ana Rita Costa Ribeiro
Subturma 5

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