segunda-feira, 2 de maio de 2011

Está na hora de codificar o Direito do Ambiente?

PEDRO BARRAMBANA SANTOS

Prestes a entrar na “meia-idade”[1], o Direito do Ambiente surgido na 2ª metade do séc. XX, inicialmente como problema político, sendo em consequência desta ponderação transformado numa questão jurídica, enfrenta uma multiplicidade de problemas que, quando à sua estrutura, cabe analisar.

Como salienta VASCO PEREIRA DA SILVA[2], podemos encontrar neste domínio uma multiplicidade de fontes jurídicas que, em certa medida, é característica deste ramo de Direito.

Relativamente às fontes internacionais, há que distinguir entre fontes bilaterais e multilaterais de Direito Internacional, tendo como ponto distintivo o número de partes que os outorgam, respectivamente, duas ou mais partes. Em relação aos instrumentos de Direito Internacional Público bilaterais cabe referir que estes têm como objectivo regular, entre as partes contratantes, as afectações a um determinado bem jus-ambiental comum. Por outro lado, os instrumentos multilaterais tendem a surgir na esfera de organizações internacionais, sendo que estes instrumentos podem ter como finalidade a protecção de diferentes realidades. A tentativa de abrangência universal destes modos de regulamentação conduz muitas vezes, para que se verifique a sua efectiva outorga pelos Estados, à renúncia da sindicância do seu cumprimento por parte das organizações que lhe dão origem. A prevalência de “soft law” nestes instrumentos internacionais deve ser apontada como uma das duas características mais evidentes, pelo que, por vezes, não é possível identificar em certos instrumentos mais do que meras proclamações políticas e nem tantas vinculações dos Estados à protecção de bens ambientais como seria expectável.

Ainda no plano internacional, torna-se imperativo referir o direito de fonte comunitária. Embora na origem, a então Comunidade Económica Europeia não tivesse como objectivo actuar no plano ambiental, a tendencial expansão da União Europeia no que às suas áreas de actuação diz respeito culminou no actual art. 191º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[3], onde se identifica quais são os objectivos a prosseguir na área ambiental, nomeadamente:

- preservação, protecção e melhoria da qualidade do ambiente;

- protecção da saúde das pessoas;

- utilização prudente e racional dos recursos naturais;

- promoção, no plano internacional, de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente, e designadamente a combater as alterações climáticas.

O estabelecimento destes objectivos por parte da União Europeia conduz ao surgimento de diversas fontes de Direito do Ambiente, nomeadamente, regulamentos, directivas, recomendações e resoluções pelo que se pode afirmar, tal como VASCO PEREIRA DA SILVA, que existe um verdadeiro Direito Europeu do Ambiente com uma importância mais vasta, tendo presente a existência de diversos mecanismos jurídicos, nomeadamente a aplicabilidade directa, assim como os mecanismos jurisdicionais que conduzem a sua efectivação destas fontes de normas jurídicas.

No âmbito do direito interno, a Constituição da República Portuguesa (= CRP) encerra em si diversos preceitos relevantes aquando da análise do Direito do Ambiente devido à sua posição na hierarquia das normas, sendo necessário efectuar uma referência aos art.os 9º/alíneas d) e e) e 66º, ambos da CRP. Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA[4], estas disposições permitem bipolarizar o Direito Constitucional do Ambiente ou, como se preferir, a Constituição do Ambiente: com sede no art. 9º CRP encontramos o Direito do Ambiente como uma tarefa fundamental do Estado que cabe a este prosseguir, pois, tal como refere GOMES CANOTILHO[5], o Estado está comprometido na efectivação de certos objectivos constitucionais; já no art. 66º podemos encontrar o Direito do Ambiente noutro âmbito, surgindo aqui como direito fundamental[6].

Num plano hierarquicamente inferior, a legislação ordinária ocupa um papel de relevo na regulação deste ramo do Direito. Basta consultar uma qualquer compilação que tenha como objecto o Direito do Ambiente para constatar a multiplicidade de instrumentos legislativos que densificam este ramo do Direito[7].

A este conjunto de leis (em sentido amplo) é adicionada a actuação administrativa que, por meio de regulamentos administrativos, acresce diversas normas gerais e abstractas, reguladoras do ambiente, a um já vasto corpo normativo.

Após a referência efectuada às fontes normativas que enformam este ramo do Direito, constatamos que a sua multiplicidade não permitem dotar o Direito do Ambiente de uma unidade de sentido. A intervenção legislativa que se verifica no âmbito ambiental manifesta um carácter regulamentar tendencialmente localizado, não dotado de uma visão de conjunto, nem que seja pela obrigatoriedade de transposição das diversas directrizes comunitárias para a ordem jurídica interna, sem a sua adaptação ao que já se encontra regulado no plano nacional.

Torna-se então necessário reflectir sobre a necessidade de se formular um Código do Ambiente, onde seja vertido e agrupado o corpo normativo deste novo ramo do Direito.

Para tal, comecemos então por compulsar a Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL 224-4/96, de 24 de Setembro e pela Lei 13/2010, de 19 de Fevereiro). Neste diploma, onde se enuncia o direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado (art. 2º/1), surgem as diversas finalidades da política ambiental – optimizar e garantir a continuidade de utilização dos recursos naturais (art. 2º/2) -, assim como os princípios específicos desta política ambiental (art. 3º). Todavia, esta lei, redigida de forma demasiado ampla quanto aos seus termos – GOMES CANOTILHO refere mesmo que esta Lei de Bases define sim “ambiência” e não “ambiente” – tornou-se, não no alicerce, mas numa ténue força gravitacional entre os diferentes corpos legislativos que enformam este ramo do Direito.

Esta “cintura de asteróides[8]” constituída pelos diversos instrumentos normativos dispersos pode ser agrupada para efeitos de exposição (ou até mesmo como proposta de sistematização legal) em vários pólos tendo em consideração o seu carácter funcional-sistemático. Assim, partindo de uma “parte geral” – onde se poderá integrar a Lei de Bases do Ambiente, a Lei do Estatuto das Organizações Não Governamentais do Ambiente (Lei 35/98, de 18 de Julho) e a Lei do Acesso à Informação sobre o Ambiente (Lei 19/2006 de 12 de Junho) -, seria possível a existência de um corpo aglutinador que se dedicaria a estabelecer, de forma transversal, o âmbito, objectivos, medidas e princípios, conceitos e definições para a totalidade das realidades que bulem com a regulamentação e protecção do Direito do Ambiente, assim como o fenómeno das pessoas colectivas com objectivo de protecção ambiental e da sua legitimidade para intervenção em procedimentos e/ou querelas relacionadas com bens ambientais.

De seguida podemos assinalar, com unidade de sentido, um corpo organizacional quanto ao objecto em causa que se ocuparia pela estruturação das atribuições das diferentes entidades públicas actuantes no âmbito do Direito do Ambiente. Integrante deste corpo podemos apontar a Lei Orgânica do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (DL 207/2006, de 27 de Outubro), a Agência Portuguesa do Ambiente, instituída pelo Decreto Regulamentar 53/2007, de 27 de Abril, assim como o Fundo de Intervenção Ambiental, instaurado pelo DL 150/2008, de 30 de Julho.

Posteriormente, podemos salientar aquele que será o conjunto legislativo com maior relevo após a definição das linhas mestras efectuada na parte geral, denominando-se como procedimental a generalidade de normas que tem como fim regulamentar as diferentes relações jurídicas multilaterais que se estabelecem tendo contacto relevante com o Direito do Ambiente, no sentido de Direito Material do Ambiente. Sendo que a maioria destas relações jurídicas multilaterais deste ramo do direito se estabelecem no âmbito de procedimentos administrativos será prudente a sua junção sobre orientações, princípios e trâmites uniformizadores, ressalvando sempre possíveis alterações cirúrgicas que efectivamente se justifiquem tendo em consideração as especificidades de cada objecto em causa e da sua finalidade. Neste âmbito podemos identificar os regimes jurídicos da Avaliação de Impacte Ambiental e de Avaliação Ambiental Estratégica (instituídos, respectivamente, pelo DL 69/2000, de 3 de Maio e pelo DL 232/2007, de 15 de Junho), o regimes de prevenção e controlo integrado da poluição (DL 173/2008, de 26 de Agosto) e de Acidentes Graves que envolvam Substâncias Perigosas (DL 254/2007, de 25 de Julho), os regimes de Exercício da Actividade Industrial (DL 209/2008, de 29 de Outubro) e da Actividade Pecuária (DL 214/2008, de 10 de Novembro), o Sistema de Reconhecimento e Acompanhamento de Projectos de Potencial Interesse Nacional [PIN] (DL 174/2008, de 26 de Agosto), o regime jurídico para os Projectos de Potencial Interesse Nacional classificados como de importância estratégica [PIN +] (DL 285/2007, de 17 de Agosto) e, por fim, o Sistema de Ecogestão e Auditoria e o Sistema comunitário de Atribuição do Rótulo Ecológico (respectivamente, Regulamento CE 761/2001 do Parlamento e do Conselho, de 19 de Março e o Regulamento CE 1980/2000, do Parlamento e do Conselho, de 17 de Julho. Esta enumeração de corpos normativos que atribuem permissões, proibições ou obrigações é meramente exemplificativa perante a multiplicidade de fontes legislativas[9] existentes em vigor no nosso ordenamento jurídico, não referenciando a legislação de alguns dos sectores específicos.

Por fim, é exequível agrupar-se a legislação em vigor tendo em consideração o seu fim ressarcitório e/ou sancionatório em face das violações do Direito do Ambiente. Assim, o DL 147/2008, de 29 de Julho (Responsabilidade Civil por Danos Ambientais) e a Lei 50/2006, de 29 de Agosto (Lei-Quadro das Contra-ordenações Ambientais) funcionam como garante do cumprimento dos preceitos legais, seja através da aplicação de coimas por violação de comandos imperativos ou através da responsabilização civil do agente que causou danos ambientais.

Após este percurso sobre alguma da legislação existente no âmbito do Direito do Ambiente, cabe reflectir sobre a necessidade ou conveniência de ser formulado um “Código do Ambiente” ou um “Código Verde” no ordenamento jurídico português no estádio actual deste ramo.

A este respeito, VASCO PEREIRA DA SILVA[10], aquando da elaboração de uma colectânea de legislação ambiental afirmou:

«Mas "Verde Código" pretende também ser o prenúncio de um futuro "Código Verde", abrindo caminho para a sistematização e a codificação da legislação ambiental, a fim de «tornar acessíveis os "mapas do tesouro" que permitam a todos os interessados orientar-se na "selva" da legislação ambiental». Isto porque, num domínio, como o nosso, caracterizado pela grande «diversidade de fontes, a que se veio juntar a "tendência infantil" dos fenómenos emergentes para a proliferação e a dispersão de textos normativos, era inevitável o surgimento de dificuldades de harmonização e de sistematização do Direito do Ambiente, tantas vezes geradoras de "poluição jurídica"». Daí a necessidade «de uma codificação ambiental de modelo "aberto"», que permita «não apenas criar um complexo normativo adequado a regular um domínio em permanente desenvolvimento e mutação, como também superar as limitações decorrentes da relativa escassez de tratamento doutrinário e jurisprudencial das questões jurídicas ambientais. O esforço de racionalização legislativa, propiciado pela elaboração de um Código do Ambiente (assim como pela sua preparação e discussão no quadro do respectivo procedimento prévio), teria assim o significado de constituir simultaneamente um impulso e uma oportunidade para o desenvolvimento científico do Direito do Ambiente».»

Na opinião deste autor, a produção legislativa de um Código do Ambiente, para além de impulsionar o aprofundamento e debate acerca das soluções legislativas, permitiria tecer um corpo normativo, pelo menos relativamente a uma parte mínima e transversal da disciplina do Direito do Ambiente.

No que concerne a este ponto, considero que a opinião de VASCO PEREIRA DA SILVA se apresenta como bastante acertada pelos motivos que se seguem.

Este jovem ramo do Direito, embora só tenha surgido na 2ª metade do séc. XX, tem experienciado as mais variadas formas de abordagem. Tendo surgido como problema político, rapidamente se transmutou para problema jurídico embora tal não signifique que tenha ocorrido uma estabilização quanto ao seu conteúdo. Como supra referenciado, da pluralidade de fontes das normas reguladoras do Direito do Ambiente sempre resultou uma certa “turbulência” devido ao facto de confluírem de várias origens. Assim, foi preterida uma abordagem ampla e sistematizada em face de intervenções legislativas circunscritas aos diversos aspectos que se foram adensando de tal modo que, utilizando a imagem de VASCO PEREIRA DA SILVA, hoje existe uma «densa “selva” legislativa» no âmbito deste ramo do Direito.

Assim, pelos motivos supra referenciados, seria de salutar partir da análise da legislação vigente pois tal método verterá várias virtudes. Em primeiro lugar, seria possível analisar de forma crítica a bondade das soluções legislativas e a sua eficácia no plano da execução. De seguida, tal implicaria que, a elaboração desse novo conjunto de normas partiria escorado no direito já existente, evitando que áreas regulamentadas hoje em dia passassem a ser lacunares. Consequentemente, partindo do exercício de análise da “selva legislativa”, poder-se-ia efectuar um raciocínio metódico e sistematizador do ramo em função das suas necessidades, tal como foi efectuado supra, ainda que de modo insuficientemente alicerçado.

Esta actuação por parte do legislador traria em si diversos benefícios, não só ao próprio Direito do Ambiente, que ganharia uma lógica de conjunto e de protecção articulada do seu objecto, como aos próprios operadores administrativos e agentes económicos, visto que uma diminuição da incerteza relativamente ao direito aplicável e dos procedimentos diferenciados fomentaria uma maior confiança no sistema e produziria ganhos de eficiência.

Contudo haverá que ressalvar, por fim, um aspecto: dada a volubilidade das diversas medidas de protecção do ambiente, relacionadas com o constante avanço e investigação científica, estaremos necessariamente perante uma codificação tendencialmente aberta, receptiva à inovação e actualização dos possíveis critérios técnico-científicos introduzidos nas normas jurídicas, pelo que, em momento algum, codificar poderá exprimir uma cristalização dos regimes jurídicos.

Deste modo concluo que será de salutar a ocorrência de uma reestruturação do Direito do Ambiente por parte do legislador, de acordo com uma lógica sistemática, de modo a constituir na ordem jurídica portuguesa um verdadeiro código e não um mero repositório de normas. Assim, entendo que está na hora de codificar o Direito do Ambiente.



[1] Seguindo então a datação efectuada por MELO ROCHA, Mário, em «Direito do Ambiente: da “idade da inocência” à “idade adulta”», 2006, Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território nº 13, que faz corresponder o nascimento do Direito do Ambiente com a Conferência de Estocolmo das Nações Unidas de 1972.

[2] PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2005

[4] PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde…”, p. 39

[5] GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p.92 : ”Na concepção da CRP, o Estado não é um aparelho sem objectivos, nem pode seleccionar livremente os seus objectivos. Enquanto Estado constitucional, ele está submetido à Constituição (art. 3º-2) e comprometido na realização dos seus objectivos constitucionais. O Estado está pois constitucionalmente vinculado quanto aos meios e quanto aos fins.

[6] Entendemos que o Direito ao Ambiente será um direito fundamental embora tal qualificação seja controvertida na doutrina. Neste sentido, PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde…”, p. 84 e ss..

[7] Podemos enumerar de forma exemplificativa a seguinte legislação, em vigor, retirada de http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_main.php, consultada em 2 de Maio de 2011:

- Agência Portuguesa do Ambiente - Dec. Reg. n.º 53/2007, de 27 de Abril

- Lei de Bases do Ambiente - Lei n.º 11/87, de 07 de Abril

- Lei Orgânica da Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAOT) - DL n.º 276-B/2007, de 31 de Julho

- Organizações Não-governamentais do Ambiente - Lei n.º 35/98, de 18 de Julho

- Procedimentos Administrativos de Consulta Pública e Publicitação Aplicável aos Projectos Reconhecido - DL n.º 157/2008, de 08 de Agosto

- Regime de Avaliação de Planos e Programas - DL n.º 232/2007, de 15 de Junho

- Regime Jurídico da Responsabilidade por Danos Ambientais - DL n.º 147/2008, de 29 de Julho

- Regulamento do Sistema de Reconhecimento e Acompanhamento de Projectos - PIN - DL n.º 174/2008, de 26 de Agosto

[8] Utiliza-se por razões práticas a legislação apresentada em “Colectânea de Legislação de Direito do Ambiente, I Volume, Parte Geral”, AAFDL, 2009.

[9] A avalanche legislativa quanto a este ramo do Direito é tal que a Agência Portuguesa do Ambiente, no seu sítio – www.apambiente.pt – disponibiliza índices de legislação nacional e comunitária para dar notícia da existência dos diplomas em causa. Esta mesma Agência dispõe do Sistema de Informação Ambiental sobre Direito do Ambiente (SIDDAMB), um motor de busca onde é possível encontrar legislação, doutrina e jurisprudência nacional, comunitária e internacional relativamente ao Direito do Ambiente.

[10] MIRANDA, João/PEREIRA DA SILVA, Vasco, “Verde Código – Legislação de Direito do Ambiente”, Almedina, 2003.

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