quinta-feira, 19 de maio de 2011

Criação de um mercado de valores de biodiversidade

Clima vai ameaçar metade das espécies das áreas protegidas europeias
13.04.2011
Helena Geraldes

Até 2080, 58 por cento das espécies poderão deixar de ter condições para sobreviver nas áreas protegidas europeias por causa das alterações climáticas, estima um estudo publicado na revista “Ecology Letters”, com base em projecções.

A investigação aplicou vários modelos para analisar o impacto das alterações climáticas em 75 por cento das espécies de vertebrados terrestres – 136 mamíferos, 343 aves, 42 anfíbios e 64 répteis - e dez por cento das espécies de flora (1298) da Europa, nomeadamente a área da sua distribuição geográfica potencial.

No final do século, se os modelos climáticos se vierem a verificar, mais de metade das espécies que ocorrem nas áreas protegidas europeias encontrar-se-ão numa situação de “stress” climático, explicou ao PÚBLICO Miguel Araújo, da Universidade de Évora e do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid e um dos autores da investigação. Na maioria das áreas protegidas e da Rede Natura, serão mais as espécies perdedoras do que as vencedoras.

Ainda assim, há diferenças de eficácia. “As áreas protegidas oferecem maiores garantias de sustentabilidade climática porque, primordialmente, se encontram em áreas montanhosas que servem de refúgio climático para muitas espécies”, acrescentou. Por seu lado, muitas áreas da Rede Natura 2000 “encontram-se em áreas de relevo pouco acidentado onde os impactes na biodiversidade são proporcionalmente mais elevados”. Como exemplos, o estudo refere que as áreas que oferecerão maior refúgio situam-se na Escandinávia, Grã-Bretanha e nas regiões montanhosas dos Alpes, Pirenéus e Cárpatos.

De acordo com o especialista, entre as espécies mais vulneráveis às alterações do clima estão “as espécies tolerantes a ambientes frios” e as “menos tolerantes a períodos de seca prolongada, as espécies de mobilidade reduzida, espécies especialistas no uso de determinados recursos ecológicos ou muito dependente de interacções com outras espécies, espécies com baixa fertilidade”.

Novas políticas de conservação

Por tudo isto, o estudo conclui que são precisas novas políticas de conservação, ainda que “as áreas protegidas continuem a desempenhar um papel fundamental”. As alterações climáticas obrigam as espécies a adaptar-se ou mover-se. Por isso, defendeu Miguel Araújo, “é necessário considerar a possibilidade de novas áreas não protegidas se tornarem prioritárias e requererem classificação futura”.

A curto prazo, e dependendo das espécies, será “necessário ampliar áreas protegidas existentes. Noutros criar novas áreas protegidas. Noutros ainda aumentar a permeabilidade do território para facilitar a mobilidade das espécies e finalmente, em casos extremos, será necessário adoptar medidas mais activas que poderão passar pela translocação de indivíduos de um local para outro”.

Além disso, Miguel Araújo defende a criação de um mercado de valores de biodiversidade. “Os proprietários assegurariam um determinado valor de biodiversidade nas suas propriedades e seriam remunerados por estas actividades através de mecanismos de compensação de impactes ambientais”. Isto seria “particularmente interessante se fosse implementado a nível europeu, pois permitiria aos países do Sul da Europa, que geram e gerem a maior parte da biodiversidade europeia, ser remunerados pela sua responsabilidade acrescida em matéria de biodiversidade”.

Notícia publicada no Público online[1]

Comentário:

Na notícia é sugerida a criação de um mercado de valores de biodiversidade, como medida de privatização das preocupações ambientais. Para concretizar este objectivo, parece-nos que poderiam ser celebrados contratos entre a Administração Pública e os privados.

No passado, a actuação contratual da Administração Pública era vista com maus olhos pela doutrina clássica, que tinha dificuldade em conciliar a ideia de consenso com o utilização de poder pela Administração. Actualmente, esta visão está ultrapassada, uma vez que a contratualização ganhou grande importância na actuação da Administração Pública, tornando-se numa realidade quotidiana[2].

A utilização de formas contratuais por parte da Administração Pública tanto se pode manifestar através de contratos administrativos, em que a Administração Pública se apresenta dotada de poderes de autoridade, como através de contratos de direito privado, em que há uma equiparação aos contratos celebrados entre privados. Para alguns Autores, como Maria João Estorninho, esta diferença não se justifica e defendem uma aproximação entre este dois tipos de contratos, passando a relegar esse problema para um plano secundário[3]. No mesmo sentido se pronuncia Alexandra Leitão, que chama a atenção para que o fim prosseguido é sempre o exercício da função administrativa e do interesse público. Aliás, Vasco Pereira da Silva fala de uma autêntica “esquizofrenia” quanto a esta dualidade de regimes jurídicos e de jurisdições no contencioso dos contratos da Administração Pública.

Independentemente do tipo de contrato em causa, a verdade é que o surgimento do Estado Social trouxe uma mudança no paradigma da dogmática da actuação administrativa. A maioria da doutrina alemã, como Maurer, considera que o acto administrativo não é a única forma de actuação da Administração Pública, apesar de reconhecer a especificidade dos efeitos típicos desta forma de actuação[4]. Não se pode deixar de reconhecer o mérito deste avanço, já que é preferível uma Administração que procure a aceitação das suas decisões, criando uma espécie de consensualidade submersa, nas palavras do italiano Romano[5]. Nesta linha de pensamento, o Autor afirma ser preferível a Administração celebrar um contrato de compra de um terreno do que recorrer à sua expropriação. Deste modo vai existir uma consensualidade real, ainda que informal, da sua actuação, ao mesmo tempo que se evitam tentações de procura de soluções mais fáceis (ou de “baixo negócio”), violadoras dos princípios da imparcialidade e da proporcionalidade. Também Jacqueline Morand-Deviller salienta que o acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos sancionatórios, já que a participação dos “suspeitos” faz deles “cúmplices”, o que parece ser mais eficaz do que a repressão[6].

Assim a mudança para uma dogmática contratual administrativa permite uma maior participação dos particulares no procedimento administrativo, o que não deixa de ser uma maior preocupação e garantia de que todos os interesses envolvidos são devidamente ponderados na decisão administrativa. O resultado será uma decisão administrativa mais eficaz e correcta e, consequentemente, mais facilmente aceite pelos seus destinatários.

O Direito do Ambiente não ficou imune a esta tendência para a contratualização, tendo já utilizado este novo meio de actuação sob diversas formas, v.g., quando é negociado o conteúdo de uma regra antes da sua publicação formal, ou quando é negociado a aplicação singular da regra posterior à sua publicação, ou mesmo quando sirva para resolver diferendos quanto à sua execução. A contratualização foi introduzida a Direito do Ambiente em 1987 com a Lei Base do Ambiente nos arts. 35º, n.º2 e 3, que se referiam aos contratos ambientais. Actualmente estão previstos no DL 236/98, sobre as Normas de Qualidade da Água.

Na noticia transcrita, é sugerida a criação de um mercado de valores de biodiversidade. Esta medida seria conseguida através de um contrato com os particulares, em que estes assegurariam a qualidade da biodiversidade existente nos seus terrenos. Esta proposta assenta com base no regime já estabelecido para os contratos de promoção ambiental no DL 236/98, mais concretamente no seu art. 68º. O contrato de promoção ambiental permite que os seus aderentes se vinculem à prossecução de medidas mais exigentes que a própria lei, trazendo para sim vantagens como auxílios do Estado ou o aumento da procura de mercado por razões ambientais. Este regime embora previsto para a qualidade da água tem sido aplicado a quaisquer normas de promoção ambiental.

Este seria um processo com duas fases. Na primeira, a Administração Pública celebrava/negociava com uma entidade/autoridade técnica o conteúdo dos respectivos contratos (incluindo o modo de adesão, permanência e exclusão do contrato) e, numa segunda fase, os particulares interessados adeririam ao respectivo contrato. Teríamos, então, um contrato-tipo previamente celebrado e, posteriormente, um contrato de adesão. Deste modo os particulares não teriam de se preocupar com os inconvenientes inerentes à celebração do contrato, com todas as complicações técnicas que isso acarreta, e teriam simplesmente de decidir se queriam aderir às condições pré-estabelecidas ou não. Assim também se evita que a Administração beneficie alguns particulares com a celebração de contratos mais favoráveis, pagando-lhes mais pelo mesmo, por exemplo, violando o princípio da igualdade. A Administração Pública poderia fiscalizar e sancionar quem violasse o acordo estabelecido, aplicando coimas, cessando o pagamento dos valores acordados para a manutenção da biodiversidade, ou excluindo o incumpridor do contrato por decisão fundamentada.

A celebração de contratos administrativos para resolver os problemas ambientais tem a enorme vantagem de aliviar a carga de tarefas, funções e deveres que recai sobre o Estado em matéria ambiental. Com o surgimento do Estado Social e a proliferação de novos direitos, o Estado deparou-se com deveres e problemas que teria de solucionar. Esta nova visão dogmática sobre a actuação da Administração permite atribuir aos privados funções que anteriormente pertenciam ao Estado, que continua a manter o controlo das funções executadas pelos particulares. Embora não seja este o tema que nos ocupa, há economistas que defendem a maior eficiência do sector privado face ao sector público. Por isso, e com este pressuposto, podemos considerar que quando a Administração Pública está a atribuir aos particulares a função de manutenção da biodiversidade nos seus terrenos está a tentar tornar a sua tarefa de protecção ambiental o mais eficiente possível.

A celebração de contratos com privados acarreta o problema de saber o que acontece caso estes derroguem normas legais já existentes, ou caso o contrato se estenda a particulares não aderentes do contrato em causa. Tome-se como exemplo, para o primeiro caso, a celebração de um contrato com um privado, onde a Administração permite que se ultrapassem as emissões poluentes legalmente previstas. Surge o problema de compatibilização entre a liberdade contratual e o princípio da legalidade, o que nos pode levantar um problema de inconstitucionalidade[7], por violação do art. 112º, n.º 6, da Constituição, quer estejamos perante um contrato administrativo ou simplesmente um acto administrativo[8]. Vamos focar o nosso estudo no primeiro problema enunciado (derrogação de normas legais).

O princípio da legalidade tem duas vertentes. A vertente negativa que expressa a prevalência da lei e a vertente positiva expressa na precedência de lei. Nas palavras de Sérvulo Correia, “o princípio da precedência da lei impede que a Administração actue ‘contra legem’. O da reserva de lei, que a Administração se conduza ‘praeter legem’ ”[9]. Hoje em dia, com o Estado Social, o princípio da legalidade passa a ter uma formulação positiva, funcionando enquanto fundamento, critério e limite de toda a actuação da Administração. Com o Estado Social deixa de fazer sentido e até é insuficiente continuar com a tradicional visão de reserva de lei face à moderna actuação da Administração. Conforme escreve Rogério Soares, “não está em causa a protecção dum status negativus, como anteriormente, mas a garantia do status positivus socialis[10]. Zezchwitz diz que o direito privado administrativo e o direito contratual administrativo estão condenados ao fracasso se, em virtude do princípio da reserva de lei, for exigida uma autorização legal formal a todos os actos da Administração. Maria João Estorninho vem defender que o princípio da legalidade, nas suas duas vertentes, tal como o princípio da prossecução do interesse público, deve vincular toda a actividade administrativa[11]. Porém, esta Autora não nega a necessidade de verificarmos como, e de que formas, se aplica o princípio da legalidade ao direito privado da Administração, pois temos de ter em conta as novas formas de actuação da Administração Pública. Por estas razões, Rui Machete fala-nos da intensidade da aplicação deste principio, ou, nas suas palavras, numa “elasticidade do vínculo de subordinação”[12].

A generalização da forma contratual por parte da Administração que, por um lado, nos traz uma maior eficácia na realização de certos fins públicos, traz-nos, por outro lado, a desvantagem de uma eventual fuga aos controlos a que está sujeita a Administração Pública[13]. A este propósito, surge um confronto entre os princípios da constitucionalidade, legalidade e tipicidade dos actos normativos e os da eficácia, participação e tutela da confiança dos particulares. Numa primeira análise, poderíamos afastar a admissibilidade da celebração de contratos privados pela Administração que derrogassem normas legais, pela prevalência do princípio da constitucionalidade, legalidade e tipicidade, mas tal não será necessário. Antes de mais, porque não nos podemos esquecer que existem outros princípios em causa e a solução mais adequada será arranjar uma forma de conciliar todos estes dentro do possível. A limitação da celebração dos contratos só aos casos que entrassem na livre margem de apreciação da Administração seria uma das possíveis soluções. Outra hipótese será de se considerarem admissíveis os contratos que, apesar de se afastarem dos limites legais, sejam susceptíveis de encontrar cabimento na previsão legislativa. Ou seja, que não se conduza a uma situação de fraude à Constituição ou à lei, nem ponha em causa os princípios da actuação administrativa, como o da igualdade, proporcionalidade ou imparcialidade. Esta última hipótese só será possível se se entender que a finalidade do art. 112º, n.º 6, da Constituição é evitar “fugas à hierarquia dos actos normativos” e que os contratos privados celebrados pela Administração Pública não têm essa finalidade, sendo antes mecanismos de concertação de aplicação da lei nos termos que ela própria estabelece (a própria lei consagra dois regimes jurídicos - o geral, que será concretizado por um especial através da celebração dos contratos)[14].

Apesar deste conflito entre princípios, este problema não se levanta nos contratos de promoção ambiental segundo Vasco Pereira da Silva e Mark Kirkby. Estes contratos são admissíveis porque vincula os seus aderentes a normas mais exigentes que a própria lei, logo o princípio da tipicidade não é posto em causa.

É indispensável que se concilie estes princípios através da sua flexibilização e de uma maior fiscalização da actuação da Administração, de modo a que a prossecução dos fins públicos se torne mais eficaz, independentemente da forma de actuação desta e do tipo de contratos em causa.

Depois desta análise, chegamos à conclusão que a criação de um mercado de biodiversidade, através da celebração de contratos com os particulares, não só é viável, como possível. Garante-se, assim, a diminuição dos deveres e funções ambientais do Estado, permitindo-se, ao mesmo tempo, a intervenção dos particulares, que são os principais interessados na gestão do meio ambiente.



[2] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, Coimbra, 1996, cit., p. 105

[3] Cfr. Maria João Estorninho, Requiem pelo Contrato Administrativo, Almedina, Coimbra, 1990, cit., p. 15

[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p.113

[5] Cfr. Alberto Romano, “Il Citadino e la Pubblica Amministrazione”, in Il Diritto Amministrativo degli Anni 80, Giuffrè, Milano, 1987, p. 189, apud Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p.107

[6] Cfr. Jacqueline Morand-Deviller, Le Droit de L’Environnement, 4.º Edição, P.U.F., Paris, 2000, p. 9, apud Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito Lições de Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra,2002, cit., p. 211

[7] Cfr Mark Kirkby, Contratos de Adaptação Ambiental, AAFDL, 2001

[8] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verde Cor..., p. 217

[9] Cfr. Sérvulo Correia, “Os Princípios Constitucionais da Administração Pública”, in Estudos sobre a Constituição, Vol. 3, Ed. Livraria Petrony, Lisboa, 1979, p. 673 apud Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Almedina, Coimbra, 1996, cit., p. 177

[10] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 181

[11] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 184

[12] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 185

[13] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p. 104

[14] Cfr. Vasco ,Pereira da Silva, Verde Cor..., pp. 218 e 219

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