domingo, 15 de maio de 2011

Responsabilidade civil das pessoas colectivas por danos ambientais e levantamento da personalidade jurídica: nota crítica sobre o regime legal

Nos termos do art. 3.º, n.º 2, da Lei da Responsabilidade Civil Ambiental, “no caso de o operador ser uma sociedade comercial que esteja em relação de grupo ou de domínio, a responsabilidade ambiental estende-se à sociedade-mãe ou à sociedade dominante quando exista utilização abusiva da personalidade jurídica ou fraude à lei”.



Apesar das falhas que a norma apresenta, não há dúvidas que a responsabilidade da sociedade-mãe constitui importante instrumento de protecção do ambiente. É certo que se trata de regra que constitui aplicação dos princípios gerais do nosso direito — maxime, do instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade[1] — e que não necessitaria de consagração expressa para a sua aplicação pelos tribunais. Há, porém, grande utilidade na previsão na lei da responsabilidade ambiental, que mais não seja por constituir importante incentivo para o recurso ao instituto pelos tribunais e consequente desincentivo às práticas de abuso da personalidade jurídica. É sabido que, apesar de serem vários os casos em que o instituto é invocado, nem sempre ele obtém aplicação, designadamente em virtude de dificuldades probatórias que se identificam[2].



A responsabilidade da sociedade-mãe é frequentemente consagrada nas leis de responsabilidade ambiental, quer na Europa quer nos Estados Unidos. Cite-se, a título de exemplo, a CERCLA norte-americana (Comprehensive Environmental Response, Compensation, and Liability Act): o exercício do controlo sobre a subsidiária torna a sociedade-mãe «operadora» e, portanto, responsável pelos danos ambientais ao abrigo daquele acto[3]. Um dos autores que mais estudou, em geral, a responsabilidade da sociedade-mãe, Blumberg, demonstra a importância desta nos casos de danos ambientais, através de um extenso elenco de campos em que essa responsabilidade se assume. O Autor sublinha como a importância conferida ao tema levou o legislador norte-americano à emissão de extensa regulamentação tanto ao nível estadual como federal capaz de resolver correctamente o problema da atribuição de responsabilidades[4]. Foi precisamente essa a questão que o legislador português teve em vista: responsabilizar o verdadeiro responsável material, a sociedade-mãe, o que é especialmente relevante quando a sociedade-filha não tenha património. Aliás são conhecidos os exemplos de sociedades de fachada precisamente para fugir à responsabilidade ambiental, normalmente mediante a subcapitalização material.



A relevância da regra do art. 3.º, n.º 2 é clara também por um outro motivo: é que se prevê a responsabilidade da sociedade-mãe por actos da sociedade-filha em caso de relação de domínio e de grupo, quando no Código das Sociedades Comerciais (CSC) essa responsabilidade só está prevista para as relações de grupo. Deve ter-se em mente que existe relação de domínio quando uma sociedade exerce influência dominante sobre outra (art. 486.º)[5] e há relação de grupo quando entre duas sociedades foi celebrado um contrato de subordinação (art. 493.º) ou um contrato de grupo paritário (art. 492.º) ou ainda quando existe domínio total (arts. 488.º e 489.º), i.e., quando uma sociedade tem 100% do capital social da outra. Do art. 501.º do CSC, resulta a responsabilidade da sociedade-mãe pelas dívidas da sociedade-filha apenas nas relações de grupo, independentemente da sua fonte, o que significa que pode tratar-se de dívidas decorrentes de danos ambientais, maxime de responsabilidade civil e administrativa.



Sucede que neste caso a regra da Lei de Responsabilidade Ambiental acaba por perder parte da sua utilidade. Assim, a previsão da responsabilidade no caso de relação de grupo através do instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade é, segundo julgamos, menos relevante: é sempre mais fácil recorrer ao art. 501.º, pois aí tudo o que se exige é que se prove a existência da relação de grupo. Não releva se a dívida é anterior ou posterior a essa relação, não interessa se foi contraída em virtude de instruções da sociedade-mãe, nem importa verificar se houve ou não abuso da personalidade. O legislador do CSC terá considerado que, devido à intensa relação entre as sociedades no grupo (de tipo económico, financeiro, administrativo, pessoal, etc.), havia um risco acrescido de lesão dos interesses dos credores da subsidiária, pelo que se impunha responsabilizar a sociedade-mãe pelas dívidas. Trata-se de manifestação do instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade, como refere Menezes Cordeiro[6], que é, como explica o mesmo Autor, um instituto quadro que, em nome do princípio da boa fé e da primazia da materialidade subjacente, permite imputar as situações e efeitos jurídicos aos sujeitos que, substantivamente, são efectivamente os seus verdadeiros titulares.



A utilidade da regra existirá, todavia, para os casos em que a reintegração económica não esteja em causa e em que, portanto, não se trate de a sociedade directora responder pelas dívidas da subsidiária. Apenas nestes casos se assume a relevância da norma, para além, é claro, das relações de domínio.



Há dois aspectos adicionais que merecem, segundo julgamos, uma observação crítica: o primeiro prende-se com o facto de a regra apenas permitir responsabilizar a empresa-mãe se esta for uma “sociedade comercial que esteja em relação de grupo ou de domínio” com a sociedade que pratica o facto. Quid juris quando às restantes pessoas colectivas que não são sociedades comerciais? E se for uma pessoa singular? Repare-se que os riscos de abusos não são menores, apesar de o legislador não ter previsto expressamente a situação. Se uma pessoa singular é sócia de várias sociedades pode transferir bens e outros recursos entre as sociedades, pode criar sociedades de fachada, etc., tudo com o objectivo de ilidir as regras de responsabilidade ambiental. Faria sentido não se recorrer ao instituto do levantamento da personalidade? É claro que não. Mas, se se poderia dizer que não é grave a omissão legislativa por o instituto em causa ser de aplicação geral, a verdade é que a restrição tem a desvantagem de poder levar a jurisprudência a ter menos abertura quando se trata de recorrer ao levantamento ou desconsideração da personalidade nestes casos. No caso das pessoas colectivas não societárias, estranha-se mais que a lei não tenha ampliado a responsabilidade a estas e se tenha limitado a tratar da responsabilidade das sociedades comerciais, considerando que tal nem sequer é coerente com a epígrafe do artigo. Chamamos, portanto, a atenção para este aspecto, em nome da tutela do ambiente: de forma alguma se pode retirar do art. 3.º, n.º 2 qualquer restrição no recurso ao levantamento da personalidade. Aproveite-se para sublinhar que mesmo em geral tem sido criticado o facto de o próprio Código das Sociedades Comerciais ter um âmbito de aplicação pessoal tão limitado[7].



Coloca-se, depois, o problema, de que já falámos, da prova. Provar os abusos é muito difícil: em especial, porque o lesado não tem acesso ao modo de funcionamento do grupo, pelo que em muitos casos não pode saber se determinada sociedade utiliza abusivamente o seu poder de direcção ou não. Aqui de nada servem as pretensões informativas constantes da Lei de Responsabilidade Ambiental, uma vez que não está em causa informação relativa ao processo ambiental em si mas sim ao modo de funcionamento típico do grupo. Ora, se os tribunais aplicarem as exigências gerais de prova, a susceptibilidade de se provarem abusos é muito reduzida: se isso é assim em geral, mais evidente é no caso presente. Assim, são gravemente prejudicados os princípios de tutela do ambiente e as finalidades da Lei da Responsabilidade Ambiental: não ficando provado o abuso, sempre que se recorra a sociedades sem património suficiente, o ambiente fica por tutelar. Por isso, parece-nos que podemos defender a aplicação por identidade de razão com o art. 5.º de uma facilitação de prova e considerar que o abuso que constitui pressuposto da aplicação do art. 3.º/2 se considera provado mediante a demonstração da sua probabilidade. De que servirá — pergunta-se — por exemplo considerar suficiente a probabilidade do nexo causal se, depois, não for possível atingir a sociedade materialmente responsável, por se esbarrar com as clássicas exigências probatórias? Julgamos, portanto, que a via da aplicação por identidade de razão do art. 5.º, conjugado com os princípios ambientais e com a ratio global da lei, constitui uma boa via para o aprofundamento da responsabilidade ambiental. De resto, mesmo fora do campo ambiental, já têm sido defendidas soluções deste tipo.



Não obstante estas insuficiências e possibilidades de aprofundamento, o princípio constante do art. 3.º/2 é, reiteramos em jeito de conclusão, uma importante regra de tutela do ambiente. Precisa, todavia, de ser objecto de uma correcta e flexível interpretação jurisprudencial, sob pena da sua inutilização.


[1] Cf., sobre ele, Menezes Cordeiro, O levantamento da personalidade, Coimbra, 2000, pp. 9 e ss.
[2] Maria de Fátima Ribeiro, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a desconsideração da personalidade jurídica, Coimbra, 2009, p. 264.
[3] Cf. Diogo Pereira Duarte, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio, Coimbra, 2007, pp. 175 e ss.
[4] Cf. Blumberg/Strasser/Georgakopoulos/Gouvin, Blumberg on corporate groups, 2.ª ed., vol. 3, pp. 99 e ss.
[5] Sobre este conceito, cf. Engrácia Antunes, Os grupos de sociedades. Estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária, 2.ª ed., Coimbra, 2002.
[6] Menezes Cordeiro, O levantamento..., cit., 11.
[7] Cf. Engrácia Antunes, “O âmbito de aplicação do sistema das sociedades coligadas", em Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. II, Coimbra, 2002, pp. 97-116.

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